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Crítica | Terra Deu, Terra Come

por Luiz Santiago
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Todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção. […] E quem opta a fundo por um encontra necessariamente o outro no fim do caminho.

Jean-Luc Godard

O que você queria taí! Nós não bebeu ela não, a sua taí. Vai e não volta pra me atentar por causa disso não. Faz sua viagem em paz.

Pedro de Almeida, em Terra Deu, Terra Come.
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Quando o cinema falta com a verossimilhança, o espectador não perdoa. A impressão de realidade é uma espécie de fascínio necessário à arte cinematográfica, mesmo quando se trata de uma “realidade inexistente” em nosso mundo, como no caso dos filmes de ficção científica e fantasia. As plateias são rigorosas quanto à intensidade com que são enganadas, pois todos sabem que um filme, mesmo os ditos “baseados em fatos”, é uma representação parcial e limitada da realidade, e não a realidade em si. Todavia, há um limite até onde isso funciona ou não. Mas quando o cinema falta com a verdade ou trabalha com a ambiguidade, o espectador parece encantar-se com a trapaça, e não raro, um largo sorriso acompanha o fim da sessão. Quanto mais mentirosa ou ambígua for a história, e principalmente, se a mentira e a ambiguidade são bem construídas e justificadas no decorrer do filme, mais forte será o seu poder de impacto sobre o espectador-cúmplice.

Lembremo-nos de Pavor nos Bastidores (Alfred Hitchcock, 1950), filme que nos apresenta um flashback falso: quando a real história nos é revelada, o impacto da mentira exalta o resultado dramático da verdade. Sobre a narrativa ambígua, podemos ainda citar o maravilhoso caso de Irma, La Douce (Billy Wilder, 1963), e destacar a cena final, quando o espectador fica pasmo diante do sobrenatural, seguido da familiar frase “mas isso já é outra história”. Porém, se a mentira é aceita e compartilhada pela plateia nos filmes de ficção, o mesmo não se dá quando a obra é um documentário. O que é um documentário? Muitos teóricos e historiadores do cinema apresentaram definições para o gênero, todavia, nenhuma delas conseguiu abarcar a real dimensão e significado desse tipo de obra cinematográfica. Genericamente, o documentário é entendido como um filme-verdade que representa, analisa, constrói ou desconstrói algum fato tido real, mesmo que para isso precise fazer uso de encenação — para horror de certa escola de documentaristas.

Então, o que dizer de uma obra que não nos permite afirmar categoricamente o seu gênero — se é documento ou farsa, se é real ou imaginário, se é ficção ou documentário? Pois esta é a gloriosa “indecisão” que nos assoma quando terminamos de assistir Terra Deu, Terra Come (2010), dirigido e editado por Rodrigo SiqueiraFilmado no quilombo Quartel do Indaiá, distrito de Diamantina, em Minas Gerais, o filme conta a história de Pedro de Almeida (ou Pedro de Alexina), um garimpeiro de 81 anos que ministra o ritual de sepultamento de João Batista, morto aos 120 anos. Durante o velório de 17 horas e o cortejo fúnebre que leva o defunto até a cova, ouvimos diversos vissungos (cantigas em dialeto benguela, comum na região, nos séculos XVIII e XIX) cantados por Pedro, que também comanda um pequeno grupo de músicos enquanto crianças, adolescentes e adultos dançam ao redor de uma fogueira acesa em frente ao morto.

O filme começa com uma história muito interessante sobre a criação da Morte e a relação Dela com seu Criador e com os homens. Quando a tela se ilumina, a câmera desce em uma panorâmica horizontal sobre uma bananeira, enquanto ouvimos os preparativos para o velório de João Batista que, como percebemos, acabara de morrer. Pedro de Alexina é o menestrel protagonista da obra, e parece ter saído de um livro de João Guimarães Rosa. O vocabulário sertanejo, a questão do Diabo, da Morte, da riqueza, do assassinato e da feitiçaria são elementos pontuados durante os 88 minutos do filme, criando uma camada antropológica e cultural riquíssima para ser explorada. Desde o prólogo, o diretor não esconde do espectador a natureza do que é exibido. Em dado momento, Siqueira aparece em frente à câmera e diz “vamos cortar?”, batendo as mãos, como se fosse uma claquete, e imediatamente um fade-out toma a tela, dando lugar ao curioso título da obra.

Terra Deu, Terra Come, não é um documentário simples, nem no conteúdo nem na forma. A imediata exposição do criador do documento dá o tom metalinguístico e de aproximação com o especador, motivo do nosso primeiro fascínio aqui. Depois, o uso de cenas filmadas em 16mm acrescenta a interferência que nos faz perguntar: trata-se de uma encenação ou opção estética para filmar essas “sequências místicas”? Em um momento, pela forma do filme, nos deparamos com uma dúvida rara quando se trata de um documentário: isso é real ou não? E o mais instigante e louvável é que o diretor abandonou o didatismo e a necessidade emburrecedora de explicar o que se passa na tela, deixando para a plateia a pergunta sem resposta. A uma certa altura do filme, Pedro de Alexina põe a máscara mortuária que vemos no cartaz da obra e seu comportamento muda completamente. Trata-se de uma personagem? Da incorporação de um espírito? Do próprio Pedro de Alexina? As dúvidas não cessam. E para aumentá-las, planos-sequências noturnos de uma “invocação de alma” e “caça ao diamante enterrado”, plasmados brilhantemente pela fotografia de Pierre de Kerchove, somam-se à trama.

A edição criativa e suave do diretor Rodrigo Siqueira dá ao filme o tempo exato de duração dramática. Em momentos de grande clímax, um corte abrupto seguido de um fade out dá lugar a uma cena de importância dramática menor, embora essa definição seja apenas em comparação aos “momentos de êxtase”, uma vez que tudo o que aparece na grande tela é cinematograficamente necessário. Além da imagem, o genial uso e captação do som direto merece destaque, pois, desde o volume até a contraposição de ruídos e vozes, tudo o que ouvimos no filme é formalmente justificável e dá à imagem uma enorme força de expressão. Não só os olhos, mas também os ouvidos são preenchidos com os elementos documentais e simbólicos, considerando o tema da obra.

Optando pela ambiguidade da história, Rodrigo Siqueira criou uma obra-prima de cunho antropológico. O filme vai além do seu aparente objeto central, o velório e enterro do velho João Batista. É mostrado o tom de dominação econômica e cultural na região, bem como a evolução, renovação e esquecimento das crenças e cantos dos “povos de antigamente”; do mundo espiritual e sua relação com o homem comum, da vida como um presente passageiro e da morte como um bem necessário. A película mostra um Brasil-Raiz, um país que dança e canta em um velório, um país que serve pinga em canequinha esmaltada durante um cortejo fúnebre, um país que canta durante o enterro, porque “não está levando um pedaço de carne”. Assistir ao filme é tomar consciência de como a máquina, a agenda, o horário marcado e compromisso inadiável castraram a humanidade, a ingenuidade e os diversos níveis de fé e superstição que existem na construção de nossa identidade como Povo Brasileiro. Terra Deu, Terra Come é uma profunda reflexão sobre a vida de uma cultura há muito deixada de lado, transformada em objeto de venda ou obrigatoriedade rala em currículo escolar.

O Brasil de Terra Deu, Terra Come é um Brasil-Alma, um Ser que passa longe do grande cofre ou da grande roldana que planeja “mudar” o país. E termina retrocedendo o próprio tempo fílmico, para revelar o que então era desconhecido, e eis que a estupefação toma conta do espectador, quando descobre do que, realmente, o filme se trata. Não só a genialidade narrativa que nos prende do começo ao fim, mas a dupla visão entre documentário e ficção, entre o mundo dos vivos e dos mortos, e entre um pedaço do continente africano e o Brasil, dão à obra a sua definitiva coroação. Rodrigo Siqueira constrói uma vereda-película misteriosa e sofisticada onde coloca todos os espectadores, mas onde só fica quem firmar pacto com a incerteza mais certa do cinema brasileiro brasileiro dos últimos anos: a realidade é uma ficção que não nos permite esquecer que… se a terra deu, podem ter certeza, mais dia menos dia, ela vai comer.

Terra Deu, Terra Come (Brasil, 2010)
Direção: Rodrigo Siqueira
Roteiro: Rodrigo Siqueira
Duração: 90min.

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