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Crítica | Terra Estrangeira (1996)

Um conto carregado de poesia e adrenalina sobre duas pessoas perdidas no mundo.

por César Barzine
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Nas histórias de Walter Salles, a cada obra que se sucede ocorre um encolhimento em sua dimensão territorial, aproximando geograficamente os pontos locais de cada trama em prol de uma dinâmica mais comunitária entre os personagens e seus conflitos. Em Terra Estrangeira (que tem a direção compartilhada com Daniela Thomas), o enredo se move por relações e anseios intercontinentais, onde o contato com aquilo que é estrangeiro — e o ser estrangeiro em si — torna-se o cerne de todo o filme; já em Central do Brasil, há o trajeto de uma região para outra com o simples objetivo de um menino vê seu pai, neste caso, o enredo está centrado numa linha linear entre um ponto de partida e seu destino, assumindo a forma de um convencional road movie; por fim, há Abril Despedaçado, que concentra a questão territorial em um mesmo lugar, fazendo com que os conflitos se deem no núcleo interno daquele espaço — que é o duelo secular entre duas famílias, e também um duelo do protagonista com a sua própria família. Salles foi enxugando gradativamente as diferenças entre os espaços a cada filme, mas sempre conservou uma outra dimensão: o tempo, fazendo com que o presente fosse norteado pela herança do passado. 

Assim como nos demais filmes há o embate entre gerações e o reencontro familiar como premissa, em Terra Estrangeira também é o passado que desperta nos personagens um ideal a ser seguido. No caso da personagem Manuela, há o sonho de retornar para San Sebastián, terra espanhola de seus pais e de sua infância. Ela tem o plano de usar seu dinheiro guardado na poupança para parcelar a viagem. Em contrapartida, há a falta de estímulo de seu filho Paco, que não enxerga tanto valor na viagem, já que não possui nenhuma identificação com aquele lugar. Entre a Espanha e o passado, o início de Terra Estrangeira já deixa claro em que contexto o filme parte: São Paulo durante o governo Collor. Diversas imagens em planos gerais da cidade abrem o longa, observa-se aquela selva de pedra e seu cotidiano. Em seguida, o filme fixa seu contexto histórico ao mostrar uma reportagem televisiva que anuncia de forma detalhada o famoso confisco do dinheiro presente nas cadernetas de poupança. O enquadramento é todo focado na tela do aparelho de TV, onde a imagem chuviscada e a descrição minuciosa da tal medida econômica conseguem sutilmente expressar o realismo daquele contexto e antecipar para o espectador a amargura que Manuela sentirá.

Por quanta desse choque, a pobre senhora acaba morrendo. Seu filho, em meio a desolação daquele luto, herda o sonho da mãe, se sentindo na obrigação de ir conhecer San Sebastián. Antes mesmo de tudo isso acontecer, Salles e Daniela evocam uma certa estranheza no filme com momentos líricos de poesia, apresentando espirituosos monólogos de Paco. Essas encenações serão conectadas a um momento mais avançado da história, mas é justamente na sequência que apresenta os transtornos de Paco pela morte da mãe que as tais cenas ganham um ressignificado. Toda a solenidade e sensibilidade dessas declarações, de certa forma, são a ponte para a maneira de como é exposto o atual sofrimento daquele jovem. Assim ocorre um contraste dessas duas partes, em que ambas atingem um forte potencial trágico na eloquência da atuação de Paco, mas se opõem ao passo que uma é a apresentação metalinguística da arte, enquanto a outra é a própria naturalidade — mesmo com todo o melodrama inserido — do real. O resultado é uma sequência muito bem coordenada pela montagem fragmentada, de efeito duro e comovente.

Terra Estrangeira é, em sua estrutura narrativa, dois filmes em um. Isso tanto pelo choque de gêneros distintos quanto pelos variados enredos paralelos que se cruzam. Ainda no começo da obra, conhecemos uma história bastante parecida com a de Manuela e Paco, que é a do casal Alex e Miguel. Estes, residentes em Portugal, possuem um relacionamento desconcertante, o que leva Alex ao intenso desejo de retornar ao Brasil, ideia que sofre uma agressiva oposição de seu companheiro. E, para completar o quadro de semelhanças, há ainda a repentina morte de Miguel — que também age como engrenagem narrativa para Paco chegar a Alex. Dentre essas duas tramas paralelas, há o traficante Igor como gancho para unir as duas histórias, fazendo de seu ofício um grande motor do roteiro na criação de conflitos. 

E é justamente a partir de sua presença que surge a mistura de gêneros aplicada aqui. Após uma ambientação de drama com enfoque psicológico e caracterizada como um típico filme alternativo, Terra Estrangeira passa pelo choque de ser também um filme de gênero, rodeado de adrenalina, crimes, tiros e confrontos perigosos.  Pode-se dizer que o longa poderia muito bem ter se tornado uma genérica produção comercial — não necessariamente ruim — se caso fosse conduzido por um diretor aleatório. Porém, poucas vezes se viu no cinema uma coexistência tão orgânica do gênero ação e a naturalidade de um drama humanista. O estudo de personagens e todo aquele frenético dinamismo produz, numa cuidadosa síntese, uma experiência sensível e excitante, sendo turbulenta nos perigos enfrentados pelos protagonistas e, mesmo assim, ainda mais intensa na intimidade de suas relações.

Alex, por causa de sua vida aflita, quer voltar ao Brasil; já Paco, por decorrência do sonho de sua falecida mãe, deseja justamente sair deste país e ir até a Espanha. Ambos são criaturas estrangeiras no meio em que vivem, seja por razões geográficas ou emotivas. As fronteiras territoriais ultrapassam as delimitações de espaço, viram uma questão de afeto agarrada numa busca espiritual. Trata-se não apenas de estar em um certo espaço, mas de acolher ele e cultivar aquilo que é externo no interior de si próprio. Todo esse existencialismo vai do contemplativo para uma explosão de adrenalina na encruzilhada da qual os dois protagonistas estão imersos. Portugal vira, então, um labirinto rodeado de estrangeiros, criminosos e ruas enxutas com paralelepípedos. Tudo isso faz com que, a cada momento, a espiritualidade do casal não venha acompanhada apenas do vazio e sua tristeza, ela também se conecta com o caos, que cria um limiar entre vida e morte.

Filmado em P&B, o visual do filme expõe perfeitamente toda a melancolia que permeia o longa, sendo essencial em sua unidade, pois as aflições dos personagens assumem um tom trágico ao mesmo tempo que são intercaladas por um toque de serenidade. O modo de como a fotografia varia as tonalidades de claro e escuro em algumas cenas são de um esplendor alucinante; ora alguns momentos são predominados pelo branco, ora são dominados pela cor preta. O plano em que Alex se despede de Paco no deserto é de uma significativa beleza ao distanciar os dois através da profundidade de foco, mostrando o corpo completo de Alex a distância, enquanto Paco é enquadrado num plano bem menor e mais próximo da câmera. Já em momentos de sobreposição do preto, há destaque para a cena sombria e tensa em que os dois fogem para San Sebastián de carro numa noite de chuva. Há de se destacar também a decupagem, que realiza um inventivo trabalho em ângulos zenitais, giros em 360° e planos conjuntos.  

Português é a língua predominante neste filme cartográfico. Há vozes de brasileiros, portugueses e angolanos falando a mesma língua, mas apesar de ser um único idioma, a comunicação entre eles parece ser algo ausente. A língua é, na verdade, a peça-chave para acentuar a distância entre eles. Loli, o único personagem angolano com falas, exerce um papel de alívio cômico no filme — o que não o torna um personagem “menos sério” dado a sua importância na trama. Seu sotaque, completamente exótico aos ouvidos brasileiros, se encaixa perfeitamente na conduta de malandragem que ele exerce, o que acaba rendendo, além da veia humorística, uma posição de “marginalidade” diante de sua situação de imigrante. Ele é uma pessoa que cai de paraquedas no momento em que Paco chega em Portugal, do mesmo modo que o próprio Igor também surge de forma completamente abrupta ao propor um trabalho ao jovem. Assim, as turbulências fluem naturalmente neste pesadelo que ganha um antídoto no encontro de Paco e Alex, formando um cruzamento de duas almas perdidas que, na ausência de um lugar para chamarem de seu, fazem desse desnorteamento o rumo de suas vidas.

Terra Estrangeira – Brasil e Portugal, 1996
Direção: Walter Salles, Daniela Thomas
Roteiro: Marcos Bernstein, Millor Fernandes, Walter Salles, Daniela Thomas
Elenco: Fernanda Torres, Fernando Alves Pinto, Alexandre Borges, Luís Melo, Laura Cardoso, Tchéky Karyo, Alberto Alexandre, Canto e Castro, António Cara D’Anjo, Filipe Ferrer, João Grosso, Miguel Guilherme, Miguel Hurst, João Lagarto, Zeka Laplaine
Duração: 110 minutos.

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