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Crítica | A Ganha-Pão

por Gabriel Carvalho
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“Elevem seus corações, não suas vozes. É a chuva que faz flores crescerem, não trovão.”

Enquanto, em boa parte do mundo ocidental, muitas mulheres não conseguem andar nas ruas sem serem olhadas, tocadas e até estupradas, devoradas por olhos masculinos doentes, presos a uma ótica perversa, nesse cenário de The Breadwinner, no meio de conflitos maiores do que as perspectivas assimiláveis por uma garotinha, mulheres são proibidas de andar nas ruas sem a companhia do pai ou irmão. Até mesmo garotinhas, como Parvana (Saara Chaudry), são caçadas pelas ruas de um Afeganistão controlado pelo Talibã. Ao serem detectadas como mulheres, são julgadas, agredidas e perseguidas por estarem “se exibindo” para os homens, atitudes misóginas. Se essa situação já é absurdamente revoltante na teoria, sem ser necessária uma vivência neste ambiente hostil para que absorvamos o mínimo suficiente capaz de realçar, em nós, uma indignação fervente, a animação, uma co-produção internacional, consegue impulsionar a nossa repulsa drasticamente, mostrando o dia-a-dia cruel e tenso de uma família sem condições de seguir as regras impostas por um regime cego diante de sua própria estupidez. Ao mesmo tempo, a guerra alvorece no horizonte, ameaçando entrar nas ruas que, em tempos diferentes, Parvana e seus irmãos, os pequenos, os maiores e os que se foram, poderiam estar correndo, brincando como crianças deveriam brincar, sem maiores preocupações.

Com o pai da garota (Ali Badshah) preso abruptamente, cabe a menina cortar seu cabelo, vestir-se de garoto e partir para o mundo afora, ser o ganha-pão de sua própria família e mover a nossa história, inicialmente, por meio da trivialidade. Antes mesmo de Parvana tomar, para si, a ação de fingir-se ser um garoto, Nora Twomey, diretora do filme, nos leva, algumas vezes, a vivenciar uma trivialidade assombrosa, na qual não se sabe quando algo de ruim pode vir a acontecer. Parvana vai encher o balde de água e volta para casa correndo. Parvana vai ao mercado e volta para casa correndo. O pior de tudo é que, antes da solução vir, o espectador se sente enclausurado junto à família, todos presos a correntes forjadas por homens cruéis. Mais tarde, quando a menina pode finalmente respirar o ar do mundo sem ser julgada, o sentimento de liberdade nela é inevitável, e Twomey faz questão de nos passar isso. Todavia, logo a obrigação retorna e a garota continua lutando para tirar seu pai da cadeia; uma tarefa enorme e árdua para um menina que não tem outra opção de vida senão continuar a carregar pesos, figurativos e literais, nas costas. Ao tentar amenizar um pouco a história toda, eis que nos aparece Shauzia (Soma Bhatia), uma antiga colega de escola de Parvana, que, da mesma maneira que a nossa protagonista, também veste-se de garoto nas ruas.

The Breadwinner, baseado no livro-homônimo de Deborah Ellis, não é apenas um espetáculo narrativo, que amarra as pontas de uma história consideravelmente simples de forma corajosa e verdadeira, mas um espetáculo visual, trazendo a animação tradicional para evidenciar o imaginativo das histórias contadas aqui, tanto as por Parvana quanto as por seu pai. Os contos, transmitidos oralmente, são uma marca cultural que, enquanto em alguns casos poderiam destoar do restante da obra, aqui moldam a veia maior de um trabalho forte de caracterização e estudo de personagem. A história do garoto contra o malvado elefante pode não trazer rápidas retomadas do arco central, mas mostra muito mais do que se poderia esperar das duas superfícies, tanto na relação entre Shauzia e Parvana, nas conexões existentes dentro do núcleo familiar e até mesmo no sentimento intrínseco à menina, em relação aos seus entes passados; a tragédia maior por trás de uma perda, naturalmente trágica. Ademais, retomando um caráter estético, o valor da animação dentro desse contar de histórias cresce imensamente, devido a criatividade nas composições visuais, muito mais coloridas do que as existentes na realidade alaranjada e cotidiana – também, a fluida transição entre a realidade e a imaginação, aproximando a figura do herói do conto com a heroína do filme.

Tanto a não-retomada da trama de Shauzia, pelo final do filme, que termina sem dar explicações significativas no que tange sua personagem, quanto uma menor manipulação emotiva durante uma sequência de perseguição envolvendo as duas amigas, que aparenta ir para um lugar inesperado, até retratando uma mudança nas expressões faciais de Idrees (Noorin Gulamgaus) para nos garantir disso, mas rapidamente foge de uma decisão narrativa mais pesada, não prejudicam a animação. Porém, no segundo caso, ou o risco deveria ser assumido ou o filme não deveria ter, desonestamente, caminhado para uma tendência fabricada – a transformação do olhar de Idrees nos guia para um pensamento errôneo. O longa-metragem, enfim, se encerra mais esperançoso do que premeditava, o que não é necessariamente algo ruim. Aqui, funciona como uma espécie de fagulha denotativa do íntimo da animação, que não quer transformar uma história difícil em mais uma tragédia, como tantas outras, mas definitivamente não nos faz esquecer das que existiram e ainda existem pelo mundo todo, seja as de caráter abstrato, prenunciadas por discursos de ódio, seja as concretizadas; o ódio pelo ódio, a intolerância pela intolerância, que faz mulheres chorarem a morte de seus filhos e garotinhas ou garotinhos irem trabalhar no lugar de seus pais, como se não houvesse espaço para um pouquinho de paz.

The Breadwinner – Canadá/Irlanda/Luxemburgo, 2017
Direção: Nora Twomey
Roteiro: Anita Doron, Deborah Ellis
Elenco: Saara Chaudry, Soma Bhatia, Noorin Gulamgaus, Kane Mahon, Laara Sadiq, Ali Badshah, Kanza Feris, Shaista Latif, Kawa Ada, Ali Kazmi, Reza Sholeh
Duração: 93 min.

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