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Crítica | O Monopólio da Violência

Fazendo de seu filme um campo de batalha, Dufresne mostra como a guerra também se estende ao campo das imagens.

por Michel Gutwilen
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Se o Estado detém o monopólio da violência e o direito de usar armas contra sua população, a principal ideia desenvolvida por O Monopólio da Violência é sobre como deter o monopólio das imagens pode se tornar o contragolpe da população contra o Estado, com suas câmeras amadoras sendo tão poderosas quanto armas. Em uma ambivalência que se perde na tradução do inglês para o português, o termo “point and shoot” pode significar um comando tanto para quem possui uma câmera quanto quem possui uma arma, já que “shoot” pode ser tanto “filmar” quanto “atirar”. Assim, Dufresne, reconhece que na época moderna, a guerra fictícia que se dá no campo imagético é tão importante quanto a que se dá no campo físico, fazendo de seu filme um complexo campo de batalha. Se ter controle sobre imagens é deter o poder, e se quem tem o poder que conta a “verdade”, é através das imagens que se chega à verdade.

De um lado, vemos pessoas (ainda sem identidade), em uma sala escura, analisando as imagens amadoras produzidas durante os protestos dos jaquetas amarelas, realizados na França durante os últimos anos. Discute-se abstratamente e teoricamente o significado da violência cometida pelo Estado, com longas digressões sendo feitas que se distanciam do problema urgente e real. Mas, afinal, quem são essas pessoas que ouvimos? Por que Dufresne concede a elas o monopólio da fala em seu filme? Elas representam o povo? Portanto, em um primeiro momento, fica evidenciado um academicismo elitizado e alienado — inclusive, o próprio cenário no qual os entrevistados estão se assemelha a um espaço hermético, sem abertura para o mundo, uma câmara fechada e escura, um “estúdio”. 

De um outro lado, paralelamente a essas entrevistas, imagens cruas e viscerais dos conflitos vão sendo contrapostas pela montagem. Dufresne cria o seu primeiro campo de batalha: entre o discurso e as imagens. A simples contraposição entre os dois permite que se veja que quem está depondo não viveu tais momentos, ao mesmo tempo que atesta como as imagens (quando pertencentes ao povo) também são atreladas a uma ideia de “verdade” que não podem ser rebatidas por narrativas subjetivas. Enquanto um dos entrevistados suaviza os acontecimentos, não há como não se chocar com a visceralidade de uma mão totalmente retalhada pela explosão de uma bomba, que vista pela ótica de uma tela pixelada amadora só dá uma maior característica de espontaneidade e veracidade a ela. 

Descobrindo a identidade dos entrevistados ao fim do filme, o espectador não recebe os discursos já com um pré-conceito em que associaria o sujeito ao papel na sociedade que ele exerce. Opostamente, o que se torna o norte para moldar a opinião dos espectadores é justamente as imagens que são vistas. Afinal, o espectador passará a julgar o discurso dos entrevistados sempre pelo modo como eles interpretam e traduzem as imagens que vêem. A experiência de assistir ao longa também se torna uma experiência ativa na qual quem assiste também deve criar uma interpretação das imagens que recebem. 

Posteriormente, uma ideia mais ampla de democracia vai surgindo entre os próprios entrevistados, que se renovam e agora é possível notar a inserção de pessoas claramente mais próximas da realidade e que integraram os protestos (inclusive membros da polícia). Agora, o campo de batalha de Dufresne se estende para uma nova esfera: além do discurso contra as imagens, é agora também entre discurso vs. discurso, botando os próprios entrevistados para debaterem, usando da técnica cinematográfica mais antiga para estabelecer lados opostos: o plano e o contraplano. 

O choque causado pelas imagens também advém muito porque elas existem dentro de uma dualidade entre o encenado e o real. Nas cenas de entrevistas, obviamente existe uma ideia de mise-en-scène, isso é, encenação. Aqueles entrevistados foram maquiados, há uma decupagem prévia, escolhas de iluminação, foco de câmera e, inclusive, a ação da montagem, que corta nos momentos específicos. Em contraposição, às imagens de celular são capturas espontâneas do caos, feitas sem planejamento, mas na medida do possível, por movimentos instintivos. A câmera amadora é bastante reativa ao que acontece em seu entorno, inclusive que até sente impactos físicos (são muitas as imagens de pessoas segurando câmeras que caem atingidas ou que precisam correr). Tudo isso provoca em quem assiste uma maior identificação ao fazer com que se sinta verdadeiramente “dentro” da guerra. 

Sempre com escolhas que seguem a ideia de contrastes, Dufresne também leva o campo de batalha da imagem contra a imagem, de presente contra futuro. São vários os momentos em que as imagens amadoras e caóticas de uma rua que serviu como cenário de protesto são alternadas com aquela mesma rua, só que em momento de paz, “civilizado”, vista por uma ótica até cinematográfica, com um digital que deixa a imagem limpa, com planos fixos, sem a correria da câmera na mão. Ora, estaria Dufresne com um movimento pessimista, talvez? Como se houvesse uma indicação de que ao fim dos protestos há sempre uma manutenção do status quo, com a vida voltando ao normal, de que nada está mudando e vidraças quebradas ou ruas sujas podem ser facilmente reconstruídas? 

Apesar de ser muito bem sucedido em ir criando essa dialética como um espaço propício para o espectador ter um papel ativo na interpretação dos conflitos, O Monopólio da Violência também não é um abrangente como um tratado farockiano sobre o papel das imagens em tempos de conflito, inclusive até inocente em alguns momentos. Por exemplo, é possível pensar que falta um aprofundamento para o outro lado da ideia que ele apresenta: o Estado enquanto detentor do monopólio da imagem, de como elas podem servir para a opressão (o que é visto brevemente na cena dos guardas filmando os jovens emparelhados, com imagens que remetem quase a um campo de concentração), ignorando também todo o aparato de vigilância que pode ser usado e manipulado para uso contra os próprios manifestantes. 

O Monopólio da Violência (Un pays qui se tient sage) — França, 2020
Direção: David Dufresne
Roteiro: David Dufresne
Elenco: Arié Alimi, Myriam Ayad, Ludivine Bantigny, Benoît Barret, Taha Bouhafs, William Bourdon, Anthony Caillé, Bertrand Cavallier, Monique Chemillier-Gendreau, Vanessa Codaccioni, Alain Damasio, Michel Forst, Romain Huët, Fabien Jobard, Vanessa Langard, Mathilde Larrère, Sébastien Maillet, Mélanie Ngoyé Gaham
Duração: 86 mins.

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