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Crítica | The North Water

por Ritter Fan
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Não gosto de traçar muitos comparativos entre obra base e sua adaptação cinematográfica ou televisiva, mas, como eu quase que literalmente acabei de ler Águas do Norte, do autor britâncio Ian McGuire, que ganhou uma versão em forma de minissérie de cinco episódios por Andrew Haigh, em uma co-produção da AMC com a BBC, sinto-me impelido a fazê-lo aqui no começo de minha crítica para afirmar que estamos definitivamente em um daqueles raros casos em que a obra literária perde de longe para sua conversão ao audiovisual. O criador da série, que também dirigiu e escreveu todos os episódios deve ter percebido os profundos problemas da obra original – mesmo que reconhecendo a boa história por trás – e, mesmo mantendo a estrutura narrativa quase que intacta, inclusive transpondo diálogos e flashbacks inteiros para a série, conseguiu imprimir algo que McGuire não conseguiu: vida e coração.

E, mesmo que a minissérie não seja uma obra-prima sobre o mergulho de um homem no lado sombrio da Humanidade, The North Water é, inegavelmente, uma versão muito superior de um livro que peca mortalmente por ser objetivo e raso demais, como se seu autor estivesse com preguiça de realmente criar uma experiência imersiva ao leitor. Felizmente, Haigh consegue justamente isso, ou seja, envolver o espectador em um mundo sujo, violento e repleto de traição e morte tendo como pano de fundo o nosso desejo incessante de altera as condições naturais que vemos ao nosso redor, no caso a caça às baleias e focas em nível industrial vista no século XIX e que, em relação a outros animais e a outros ecossistemas, continua de maneira infinitamente mais perversa e destruidora do que não muito tempo atrás.

O protagonista é Patrick Sumner (Jack O’Connell), um ex-cirurgião militar que lutou pela Coroa Britânica na Índia e que carrega um segredo dessa época, que aceita trabalhar como médico no navio baleeiro Volunteer, comandado pelo   Capitão Arthur Brownlee (Stephen Graham) em uma expedição de caça que os leva até o Estreito de Lancaster, basicamente no “fim do mundo”, mas com um propósito escuso que, não demora, é revelado ao espectador. Dentre os marinheiros do navio, porém, há Henry Drax (Colin Farrell) que, como no romance, é o primeiro personagem a ser introduzido na minissérie em uma sequência inicial que já o categoriza como vilão – ou um dos vilões -, ainda que, curiosamente, Haigh tenha escolhido pegar mais leve com ele do que McGuire.

Na medida em que a trama se desenvolve, sempre tendo o massacre de animais indefesos em nome do progresso por homens que nada sentem pelo que fazem, o que é de embrulhar o estômago e de nos fazer perder as esperanças pela Humanidade logo de cara, o passado de Sumner vai ficando claro, assim como sua irresignação quando um jovem marinheiro é estuprado, fazendo-lhe empreender uma investigação que incomoda todo mundo, especialmente, no início, o imediato Michael Cavendish (Sam Spruell). Mas o que realmente importa é que Haigh, mesmo transportando cada evento do romance para dentro da minissérie na mesma ordem em que eles acontecem, é capaz de criar ampla tridimensionalidade a seus personagens, especialmente Sumner, com uma excelente e cada vez mais convincente atuação de O’Connell e que contrasta de maneira forte com quase a encarnação do mal que é a caracterização de Farrell como Drax, o que, claro, conta com um pouco de maniqueísmo, mas que funciona muito eficientemente dentro da proposta da obra.

Ajuda muito, também, a criação de um personagem inédito, o arpoador Otto (Roland Møller) que se conecta com Sumner e empresta uma dimensão religiosa à história que contrasta com a ciência do cirurgião, algo que, depois, é revivido com a introdução do padre vivido por Peter Mullan já mais para o final da história. Dessa maneira, a jornada de Sumner torna-se uma forma de autodescoberta, uma tentativa desesperada por redenção pelo que ele fez – e não fez – em seu passado em outro continente e o quanto basicamente a história se repete para seu desespero absoluto. As conexões místicas, com Drax como o diabo sempre em seus sonhos (ou melhor, pesadelos) que são também inteligentemente usados como flashbacks e o próprio Sumner, depois, como alguém imbuído de uma tenacidade pela sobrevivência que lhe transforma na visão dos nativos desta terra do norte, montam todo o contraste necessário para que o espectador crie empatia, ódio ou sinta pena dos personagens enquanto mantém aquele sentimento de desesperança que a paleta de cores sombria ao longo de todos os episódios, mesmo em ambientes citadinos, imprime à série, algo que é amplificado pela direção de arte que facilita a imersão do espectador nesse mundo doente.

Enquanto a minissérie se passa nas águas do norte, a narrativa flui bem, sem maiores contratempos, ainda que o passo seja naturalmente mais lento e sem grandes sequências de ação, até porque a pegada é realista e, por isso mesmo, crua e visceral. O problema maior existe quando há o retorno para a civilização e as chamadas pontas soltas começam a ser amarradas, já que tudo começa a ficar corrido, com resoluções a toque de caixa na metade final do último episódio. Apesar de tudo ser bem arrumado, fica aquela sensação de que o que vemos é um apêndice que, em muitos aspectos, poderia no mínimo ser mais sutil, mais entremeado de dúvidas que deixassem turvos os futuros dos personagens. Aqui, a escolha de se seguir em grande parte a finalização da obra literária não foi a melhor, diria.

Seja como for, The North Water é uma daquelas raras adaptações audiovisuais que não só sabe extrair o que de melhor o material fonte tem, como é capaz de manter sua estrutura intacta, apenas fazendo pequenas alterações pontuais aqui e ali para que o que originalmente era pálido e sem substância ganhe relevo e complexidade. A jornada ao coração das trevas que Andrew Haigh oferece é dura, mas valiosa e inegavelmente belíssima em toda sua feiura.

The North Water (EUA/Reino Unido – 15 de julho a 12 de agosto de 2021)
Desenvolvimento: Andrew Haigh (baseado em romance de Ian McGuire)
Direção: Andrew Haigh
Roteiro: Andrew Haigh
Elenco: Colin Farrell, Jack O’Connell, Stephen Graham, Tom Courtenay, Sam Spruell, Peter Mullan, Roland Møller, Kieran Urquhart, Philip Hill-Pearson, Nive Nielsen, Jonathan Aris, Lee Knight, Gary Lamont, Eliza Butterworth, Mark Rowley
Duração: 300 min. aprox.

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