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Crítica | “The Number of the Beast” – Iron Maiden

Trocando de vocalista para consolidar sua identidade.

por Iann Jeliel
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The Number of the Beast

“Mark my words, believe my soul lives on

Don’t worry now that I have gone

I’ve gone beyond to seek the truth

When you know that your time is close at hand

Maybe then you’ll begin to understand

Life down here is just a strange illusion”

Com a saída de Paul Di’Anno e a entrada de Bruce Dickinson, Iron Maiden precisou passar por inúmeras adaptações estilísticas para o encaixe do vocal mais melódico do novo vocalista ser uma evolução natural do experimento dos discos anteriores. Nesse processo, não houve apenas um amadurecimento daquele som agressivamente “elegante” do metal apresentado, como uma consolidação em forma da identidade do grupo. Vemos que há um tom rebelde de começo semelhante ao autointitulado Iron Maiden, buscando dimensionar um passeio estilístico das valências da banda. Contudo, diferente do primeiro e mais próximo a Killers, The Number of The Beast possuía uma interligação  temática e unitária entre as canções.

As letras descrevem trajetórias de diferentes eu-líricos pagãos (vikings, crianças com poderes psíquicos, gangsters, prisioneiros, prostitutas, colonizadores) enquanto sonoramente retratavam as suas narrativas num provocativo jogo de crenças com o ouvinte. Por consequência, o disco fez a banda ser rotulada até de satanista por alguns mais conservadores, especialmente pela sua canção autointitulada.  Uma rotulação boba, afinal, se Maiden é satanista por descrever as linhas do apocalipse e retorno da “coisa ruim”, a Bíblia também o é. A questão maior é que Harris e Dickinson se aproveitaram desse contexto polêmico criado pela mídia para atingirem maiores holofotes ao grupo, por exemplo, espalhando histórias relacionadas ao número do “capiroto” (666) aparecendo em suas vidas como uma brincadeira publicitária.

Isso eventualmente se misturou com a síntese da proposta sensorial da música que simula sonoramente em tom exacerbado esse “fim dos tempos”, deixando uma “abertura” para esse julgamento errôneo. Porém, este rótulo nunca prejudicou a imagem da banda. Pelo contrário, The Number of The Beast firmou a proposta “historiográfica” de Iron Maiden, tanto no quesito de trazer canções ricas em conteúdo de história e literatura, quanto na invenção de narrativas com personagens originais, afim de juntar tudo em uma mitologia própria que se molda a cada nova música e enriquece a cada novo álbum da discografia.

Ainda que tenha sido o álbum que dimensionou conceitualmente essa personalidade da banda e seja um dos mais criativos exercícios dela nesse aspecto, como mencionei, há algumas músicas que particularmente não gosto tanto, na sequência oito faixas. Começando pela abertura, Invaders, que tem como pano de fundo uma invasão Viking ao território da antiga Germânia. É uma das poucas músicas da banda que considero dessincronizadas. Parece que os riffs intensos do baixo de Harris quebram os segmentos de transição de timbre de Dickinson, bagunçando estruturalmente o lado frenético  da música. The Prisoner (baseada numa série de mesmo nome de 1967) é outra que, apesar de amada por muitos, considero desequilibrada num sentido semelhante. Sinto a intensidade instrumental se contrastando com o tom melódico do refrão, não sendo uma construção complementadora à sua potência.

Mais próximo do final, também destaco negativamente Gangland, acusada pela própria banda como uma música que deveria ter sido descartada do álbum no lugar de Total Eclipse, que ganhou vida tempos depois, em outra versão do disco, e é consideravelmente uma música mais interessante. Mesmo contendo uma ótima introdução com o solo de bateria de Clive Burr, a performance vocal de Dickinson soa atropelada, fora de sintonia com a velocidade do instrumental já rápido do dueto de guitarra. Fora que a letra é pobre em contexto histórico, destoando do valor lírico das demais músicas, sendo basicamente uma encenação de uma briga territorial entre gangues britânicas. Em compensação a essas três canções que os considero um trio digno de estar entre as mais fracas da banda – até pelo processo adaptativo em construção da nova formação –, as cinco demais brigam fortemente para estar na coletânea dos ‘Greatest Hits’ de Iron Maiden.

A própria autointitulada do disco, apesar das polêmicas e de ter ficado um pouco enjoativa com o tempo, apresenta substância o suficiente para sustentar sua fama como um dos grandes hinos da história do metal. A abertura com aquela narração obscura nos mergulha completamente no clima de pesadelo que vai se tornando cada vez mais atordoante dada a crescente visceral de intensidade da performance de Dickinson, transacionada precisamente pelo combo instrumental atmosférico e deliciosamente harmônico no icônico refrão. Aliás, falando em refrãos icônicos, Run to the Hills é talvez uma das melhores “canções de palco” de Maiden. Poucas possuem um ritmo “galopante” tão viciante e que faz tanto sentido perante a descrição da letra, narrando a perspectiva de um índio nativo americano com a chegada dos colonizadores ingleses por cavalos. A energia direta da lírica dá todo um panorama urgentemente opressor dessa narrativa, tornando o coro que enfatizada o título no refrão, um verdadeiro grito de desespero da necessidade da fuga como única maneira de sobreviver.

Dickinson se mostra um verdadeiro mestre nesses coros enfáticos aos títulos, tanto em Run to the Hills como na semi-balada Children of the Damned, que basicamente mistura os dois clássicos mencionados com muita originalidade, dando um pitaco do que seria a fase progressiva da banda mais à frente. Ao ser baseada em um filme homônimo (no Brasil, A Estirpe dos Malditos, de 1964), por sua vez, adaptações do livro The Midwich Cuckoos de John Wyndham, o instrumental cadenciado carrega toda uma atmosfera de terror consigo, bem sugestiva no início e que vai ficando gradativamente mais explícita conforme chega próximo da metade. A partir de determinado momento quebra-se esse ritmo contemplativo para uma sonoridade poderosa, quase épica, evidenciando o talento de Dickinson em fazer trocas de timbre conforme o aumento sutil de grave pedido de estrofe a estrofe até o coro. O ápice de Children of the Damned é até hoje uma das performances mais memoráveis do vocalista.

O efeito catártico deste terço final é bem semelhante ao que ocorre no clímax de 22 Acacia Avenue, música que continua a história da prostituta Charlotte de Charlotte the Harlot. Contudo, para este caso, o mérito está mais na combinação instrumental, que apresenta uma extraordinária capacidade de variações rítmicas, direcionadas para um simulacro caótico da rotina da personagem, contada através de outros pontos de vista. A cada mudança de perspectiva na lírica, a sonoridade se transforma com uma criatividade impressionante. Faz parecer que os instrumentos estão com vida própria além do que é pedido pelo vocal, em especial a guitarra de Adrian Smith, aliada aos riffs agressivos da bateria de Burr, trazendo um dos combos mais empolgantes da história da banda. Ela só não é a música mais harmônica do disco e minha favorita, porque o melhor fica para o final em Hallowed Be Thy Name.

Basicamente une-se uma performance vocal tão inspirada quanto de Children of the Damned com uma combinação instrumental tão inspirada quanto 22 Acacia Avenue dentro de uma das letras mais complexas escritas por Harris. A narrativa desse prisioneiro prestes a ser enforcado antes da última reza evoca diversos questionamentos sobre a fé humana perante a inevitabilidade da morte. A realidade é uma ilusão inútil pensando no quão pouco tempo representa nossa existência? Do que adianta a crença em algo maior para fugir do medo e desespero do destino, se o criador selou a mesma conclusão para todos? É possível um destino tão cruel ser a porta de um renascimento da alma para todos? Uma obra-prima filosófica, repleta de ambiguidade, pessimista e esperançosa na mesma medida e pode-se dizer que o primeiro verdadeiro épico de Maiden com aquela tradicional estrutura de início lento que cresce em intensidade no meio, volta ao melódico para terminar pesada e grandiloquente. Uma lírica poderosa executada musicalmente com máxima maestria.

Com um olhar holístico de hoje, enxergo os méritos de The Number of The Beast muito mais pelo investimento inteligente no marketing circundando o conceito do álbum do que necessariamente na qualidade constante de todas as músicas da obra. Contudo, as músicas impactantes que fizeram diferença e promoveram um ponto de virada na história da banda, seguramente lhe deram virtudes para ser justamente classificado como divisor de águas também para a história do heavy metal.

Aumenta!: Children of the Damned, 22 Acacia Avenue e The Number of The Beast
Diminui!: Gangland
Minha Canção Favorita do álbum!: Hallowed Be Thy Name

The Number of the Beast
Artista: Iron Maiden
País: Reino Unido
Lançamento: 22 de março de 1982
Gravadora: EMI, Harvest Records
Estilo: Heavy Metal

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