Home FilmesCríticas Crítica | A Menina Silenciosa (The Quiet Girl)

Crítica | A Menina Silenciosa (The Quiet Girl)

Delicadeza desconcertante e encantadora.

por Ritter Fan
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A delicadeza de The Quiet Girl é desconcertante e absolutamente encantadora, mesmo considerando que o longa dirigido e escrito pelo irlandês Colm Bairéad, em sua primeira obra de ficção, baseada em novela de Claire Keegan, lida com assuntos difíceis e desagradáveis como o luto e a negligência parental. A sensação é a de assistir a um conto de fadas realista, com atuações tocantes, fotografia lindíssima e uma história cativante desde os primeiros segundos em que vemos a menina do título estirada em um campo de grama alta. 

A jovem é Cáit (Catherine Clinch, estreante no ofício de atriz), uma de várias irmãs e um irmão de uma família empobrecida em alguma área rural irlandesa no começo dos anos 80. Sua mãe está novamente grávida e, como medida de economia, ela é enviada para temporariamente morar três horas de distância com a família Cinnsealach, que não conhece, composta pelo casal de meia idade Eibhlín (Carrie Crowley), prima distante de sua mãe e Séan (Andrew Bennett). 

A menina de vestido puído, cabelo ensebado, unhas sujas e pais indiferentes, então, vê, aos poucos, sua vida ser transformada pela atenção amorosa que recebe de Eibhlín que imediatamente a veste com as roupas de menino (seu pai esquece de deixar a mala dela ali) que têm disponíveis, o que silenciosamente estabelece um passado para o casal que vai ganhando corpo. Séan, inicialmente frio, distante e monossilábico por razões que se conectam com esse passado, não tenham dúvida, quando precisa ficar a sós com a menina, estabelece uma linda conexão recíproca com ela que acaba sendo o verdadeiro destaque dramático da fita, como um desabrochar paternal que é capaz de arrancar sorrisos bobos mesmo do espectador mais durão. 

Para criar os “dois mundos” da jovem Cáit, a direção de arte esforça-se em evitar maniqueísmos baratos para contrastar a “família pobre” e a “família rica”, criando ambientes que são ao mesmo tempo distantes e próximos, cheios de vida, mas com pouco amor e vazios de vida, mas transbordando amor, com a fotografia de Kate McCullough mantendo a sobriedade da abordagem, mas sem se furtar de aos poucos inserir cor no tempo em que a menina passa com sua família postiça. 

Mas os destaques repousam mesmo nos trabalhos dramáticos da trinca principal. Crowley consegue, sem muito esforço, reunir melancolia e alegria em seu personagem sem fazer um aspecto se sobrepor ao outro, mas sim somando os dois de tal maneira que ela desaparece em sua personagem. E isso é essencial para o filme funcionar em seu terço inicial, pois é a atriz que precisa carregar a narrativa nesse início perante o espectador, já que tanto Cáit quanto Séan permanecem em grande parte quietos e arredios. 

Quando chega então a vez de Bennett literalmente devolver a vida – a razão de viver, diria! – a seu Séan, ele o faz com um simples gesto de gentileza (que é também de contrição) que é capaz de “desmontar” o espectador, algo que Bairéad muito claramente reconhece como o mais próximo de um money shot que um filme desses pode se dar ao luxo de ter. A partir desse ponto, o ator toma de assalto o filme para si e estabelece toda a maravilhosa delicadeza do longa que mencionei no parágrafo de abertura, seja em sua relação com a esposa, seja a conexão com seu passado, seja, claro, com sua protegida.

E o que dizer então da pequena Clinch? Atores e atrizes mirins em suas estreias podem entregar atuações do tipo “uma vez na vida e nunca mais” e, mesmo que esse acabe sendo o caso dela – e espero que não seja – o que ela consegue fazer é impressionante, o que repito ser mérito próprio dela em consonância com a capacidade do diretor de extrair esse trabalho inesquecível da menina. O uso do silêncio e da economia de movimentos são as chaves para a personagem funcionar e é por isso que uma tomada como a dela correndo pela primeira vez até a caixa de correio a pedido de Séan é tão bonita e significativa para a evolução da história, especialmente quando lembramos que, não muito tempo antes, Cáit perguntara à Eibhlín, em um misto de espanto, alegria e desapontamento, se não havia mais crianças ali. 

Óbvio que não pretendo destrinchar o final aqui, pois não tenho intenção de estragar o prazer de se assistir a esse filme para ninguém, mas reparem como a mesma palavra tem significados tão diferentes pela fusão de performance dramática, montagem e direção, em uma daquelas tomadas que de imediato cava seu espaço dentre as mais belas da Sétima Arte. Se o money shot que mencionei já era capaz de fazer qualquer um deixar a guarda cair, o final de The Quiet Girl chega a ser uma obra-prima em sua enganosa simplicidade que, de quebra, ainda evita o melodrama barato. A menina quieta, quando fala, é a ternura encarnada. 

Obs: Crítica originalmente publicada em 20 de fevereiro de 2023 em antecipação à cerimônia do Oscar. Republicada em 21 de dezembro de 2023 em razão do lançamento do filme em circuito cinematográfico no Brasil. 

The Quiet Girl (An Cailín Ciúin – Irlanda, 2022)
Direção: Colm Bairéad
Roteiro: Colm Bairéad (baseado em obra de Claire Keegan)
Elenco: Carrie Crowley, Andrew Bennett, Catherine Clinch, Michael Patric, Kate Nic Chonaonaigh, Joan Sheehy, Tara Faughnan, Neans Nic Dhonncha, Eabha Ni Chonaola, Carolyn Bracken, Pádraig Ó Se, Breandán Ó Duinnshleibhe, Sean Ó Súilleabháin, Aine Hayden, Elaine O’Hara, Marion O’Dwyer, Jessica Joannides, Roise Crowley, Grainne Gillespie, Norette Leahy, Rian Bairéad
Duração: 95 min.

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