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Crítica | The Sandman – 1ª Temporada

O soberano do Sonhar.

por Luiz Santiago
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A adaptação de Sandman é algo que vem sendo cogitado desde meados dos anos 1990. A intenção inicial era para uma obra cinematográfica, mas dificuldades diversas impediram a realização desse sonho. Foi só no início da Era dos streamings que voltou-se novamente a cogitar uma adaptação, agora para TV. Mesmo com empecilhos causados por acordos de direitos autorais (tornando impossível o uso de John Constantine e da Liga da Justiça nessa versão), a Netflix, em parceria com DC Entertainment, Warner Bros. Television e mais algumas outras produtoras, conseguiram trazer para a telinha os personagens do icônico quadrinho de Neil Gaiman, numa muitíssimo aguardada produção. Aqui ganham vida os dois primeiros arcos da saga, Prelúdios e Noturnos e A Casa de Bonecas, que abarcam as 16 primeiras edições do título, originalmente publicadas entre janeiro de 1989 e junho de 1990. Com o próprio Neil Gaiman trabalhando com o time de roteiristas e sendo um dos produtores executivos, a confiança do público geral foi progressivamente aumentando, e após lançada a série, em 5 de agosto de 2022, percebemos o quão importante é para uma produção desse porte ter uma orientação coesa e confiante no material-base, sem precisar inventar bobagens para ter algo chamativo em mãos.

A concepção geral para esta 1ª Temporada foi estruturada em duas missões para o protagonista. Penso que essa escolha não foi benéfica para o programa — a meu ver, ou adaptava-se apenas Prelúdios e Noturnos ou dividia-se a série em duas partes, lançadas com um hiato entre entre elas, para deixar bem clara a separação de atmosfera dramática –, mas não falta qualidade a nenhuma delas, apesar de haver uma grande distinção na maneira como são dirigidas e o que representam para esse Universo. Os episódios de 1 a 6 focam no primeiro arco das HQs (adicionando os eventos de O Homem de Boa Fortuna) e os episódios 7 a 10 adaptam A Casa de Bonecas, marcando-se como o bloco mais fraco da temporada. Tudo começa meio no piloto automático e repleto de belas imagens em grandes dimensões (enchendo os olhos de quem tende a se impressionar muito fácil com engenharia de produção em obras de fantasia), trazendo um ritual de magia que pretende capturar a Morte, mas acaba dando errado e captura Morpheus, o soberano do Sonhar. Esta é a grande nota do primeiro episódio, que se preocupa em apresentar o protagonista em seu ambiente, à medida que olha para o planeta vivendo sem o Rei dos Sonhos exercendo suas funções. É um início macabro e triste, com a direção de fotografia pesando a mão nos tons escuros e numa paleta geralmente fria para todos os ambientes.

O reforço do contraste na imagem, o uso constante de névoa e de pouca luz são recursos visuais que fazem sentido para a apresentação e para algumas sequências da série, mas isso me incomodou bastante nos 6 capítulos iniciais por conta de seu uso excessivo. Parece que o espírito permanentemente cinzento do Reino Unido se apoderou do show, fazendo a fotografia pender para momentos monocromáticos, com exceção do sexto episódio, O Som de Suas Asas. Do sétimo em diante, a abordagem muda e, por mais que seja óbvia a intenção de condução estética aí, é impossível não lamentar que algumas sequências da primeira metade não tenham tido um trabalho mais rigoroso com luz e cores (e com isso que dizer, exatamente, cenas com menos filtros, menos névoa, menos sombras e mais luz direta, além de melhor exploração das cores, mesmo numa paleta fria), especialmente no inferno. Um outro ponto aqui é que alguns planos gerais dão uma incômoda sensação de vazio dentro do castelo de Sonho, o que certamente é necessário em alguns momentos, para destacar a grandiosidade, mas em outros não ficam nada bem na tela — diferente do que acontece na Galeria do Desejo, por exemplo. Nos quadrinhos, esse ponto de vista acaba não tendo impacto negativo pela maneira como a estrutura da mídia é percebida pelo leitor, e pela diagramação rica das edições. Na adaptação audiovisual, esses grandes planos com ambientes vazios ou vistos por ângulos desfavoráveis não ajudam em nada as cenas em que são utilizados.

O período em que Morpheus permanece preso cria uma grande mudança na Terra, e os roteiros bebem muito dos quadrinhos nesse aspecto, lançando as sementes que darão frutos nos capítulos seguintes. O que temos do ator Tom Sturridge nesse início é apenas o olhar de reflexão, fúria e esperança, mostrados com muito cuidado pela câmera, assim como a sua ótima postura corporal dentro da redoma de vidro. Enquanto Sandman espera pacientemente, o mundo à sua volta é forjado com a ausência de bons sonhos, e é nele que ganha força a figura de Coríntio, um pesadelo que escapou do Sonhar e que cria a escola dos serial killers. Boyd Holbrook está excelente no papel, adotando uma postura cínica que cada vez mais se encanta com os prazeres da mortandade e com o apreço que recebe dos seres humanos dominados psicologicamente pela essência desse pesadelo, os serial killers que vemos na “Convenção de Cereais“. A atuação de Tom Sturridge, como Sandman, começa a ser vista de verdade a partir do momento em que ele consegue entrar no sonho de um dos guardas e usar a areia da praia como seu elemento. A cena de libertação é linda, a primeira grande explosão de felicidade que a gente tem no show. Ao longo dos episódios, Sturridge consegue demonstrar uma miríade de emoções dentro da postura “apática” que é a natural a Morpheus, outro grande ponto para o ator.

Representar um personagem “congelado” de emoções e, ainda assim, transmitir o que Sturridge nos transmite aqui é sinal de um grande trabalho dramatúrgico. E vejam que o ator mantém a coerência o tempo todo: sem gritos, sem gestos expansivos, sem correria, sem modulação intensa voz e com uma movimentação corporal levemente inumana, perfeita para a sua constituição onírica. O trabalho que a equipe de maquiagem, cabelo e figurino fez no show é aplaudível, e a construção de Sandman é uma grande prova disso. Juntando a qualidade da atuação de Sturridge com o excelente trabalho dessas equipes, tivemos uma adaptação realmente elogiável desse personagem, finalizada por uma mixagem de som digna de nota, não exagerando na tonalidade macabra e grave da voz do ator, mas não deixando que perdesse a postura imponente, introspectiva e um tanto amedrontadora que ele tem. No entanto, se é preciso destacar alguém do elenco que se possa classificar como uma “escalação e interpretação perfeitas“, esse alguém é Mason Alexander Park, como Desejo. Um personagem complexo, absolutamente odioso e ao mesmo tempo cativante, com uma postura despreocupada e maléfica, cheia de dubiedades e más intenções, sempre flertando com o prazer… Tudo isso é representado de maneira absurdamente natural pelo ator não-binário, que em si mesmo traz as características andrógenas perfeitas para o personagem. E para ser sincero, eu gostei muitíssimo mais da Galeria do Desejo do que do Reino do Sonhar. Ali, os planos abertos fazem o maior sentido, o vazio é preenchido quase que numa ilusão pelo intenso vermelho, e as formas locais somadas à disposição do centro desse Reino se engrandecem com a presença magnética de Desejo. Um verdadeiro arraso de interpretação, exposição e composição estética de personagem.

A jornada para a recuperação dos objetos roubados de Morpheus torna a primeira parte da temporada muito chamativa, porque une a fantasia a uma porção de surpresas que servem à missão. E sim, a segunda parte não alça voo muito alto porque a HQ, nesse ponto, é bastante segmentada e muito simbólica, e a série é muito fiel a todos esses aspectos dos quadrinhos. Mas aí entra a questão da adaptação: nem tudo o que funciona bem numa mídia será perfeito para outra. O afastamento de Sandman, por exemplo, ajuda a distanciar o espectador, que acaba não se importando muito com os personagens simbólicos da casa que Rose e Lyta alugam. Em relação aos Elementais do Sonhar, o enredo só deixa que a gente se importe de verdade com o Coríntio. Apesar de gostar muito do Verde do Violinista, da interpretação de Stephen Fry e das piadas com G. K. Chesterton; e de achar muito interessante o papel de Gault (Ann Ogbomo, que em poucos momentos entregou muita emoção), substituindo Bruto e Glob, nenhum dos dois consegue manter uma ligação coesa com o núcleo principal, exceto quando estão no Sonhar. O bloco do irmão de Rose, a trama de Lyta com Hector Hall e a reescrita (até interessante na ideia, mas bagunçada na execução) do enredo com o Sandman de Garret Sanford — nas aventuras oníricas do pequeno Jed (Eddie Karanja) — também não têm uma ligação ideal com a linha narrativa principal, só passando a fazer sentido quando finalmente encontra-se com o Coríntio, o que reforça o que comentei sobre a força desse personagem.

The Sandman mostra, nas duas missões adaptadas, como os Perpétuos se comportam, como o mundo se relaciona com eles e como cada um lida com os irmãos e com suas missões. Desses encontros, o mais esperado era o de Sonho com a Morte (Kirby Howell-Baptiste, em uma interpretação maravilhosa), e a espera valeu a pena, porque O Som de Suas Asas é o melhor episódio da temporada, em todo o seu simbolismo e na maneira como explora a natureza desses indivíduos. A história com Hob Gadling (Ferdinand Kingsley, muito bem no papel) também é contada neste capítulo, e a direção de arte em todo esse bloco é de cair o queixo, com o capricho e as escolhas na definição visual para cada século. Num degrau abaixo, devo destacar o trabalho visual na construção do inferno, que não foi decepcionante, mas certamente esteve aquém do que poderia ou deveria estar (o inferno de Preacher, por exemplo, concebido com bem menos recursos, conseguiu ser visualmente mais marcante e melhor fotografado). Sem contar que eu não consigo gostar da Lúcifer Estrela da Manhã construída por Gwendoline Christie, a começar pelo cabelo (que deveria ser mais volumoso e com um caimento na testa que não fosse ridículo). A atriz exprime muito bem o tom de seriedade e macabra doçura do personagem, mas falta-lhe todo o restante. É um dos erros de escalação de personagens importantes da série, embora não tão grave quanto a péssima escalação e construção de Donna Preston como Desespero, que não só é mal escalada como mal exposta na série. Pelo menos Lúcifer tem um arco potente, e sua batalha de palavras contra Morpheus chega a ser melhor que a dos quadrinhos! Já Desespero aparece pouco e não consegue mostrar a faceta repugnante da personagem original.

Dos outros grandes eventos que a temporada traz, dois ainda merecem destaque. O primeiro deles é o do capítulo 24/7, que mostra John Dee (vivido pelo fantástico David Thewlis, numa interpretação milimetricamente construída na voz) tentando reformular o mundo através do rubi de Morpheus. O massacre da lanchonete deixa sua marca, mas não é tão sujo ou violento como deveria. A produção poderia trazer um pouco da crueza de 24 Hour Diner para esse capítulo, que é um dos mais complicados de se adaptar por ser uma trama de “quarto fechado” e por ter sido originalmente construída com um uma narração. O diretor Jamie Childs conseguiu um resultado que não faz feio à série, mas que fica devendo no impacto. O segundo dos eventos é o encontro de Sandman com Johanna Constantine (Jenna Coleman). Por mais que eu goste da atriz, sua representação para uma personagem com o sobrenome Constantine é muito pacífica, muito doce, muito… normal. São poucos os momentos dela em cena que eu vejo algo demonstrando alguém com um nível de magia intenso. Tanto que Coleman está muitíssimo melhor como Lady Constantine, no século XVIII, do que como a maga da atualidade. Sua representação visual é boa (assim como os maravilhosos figurinos da Lúcifer de Gwendoline Christie), a cena de exorcismo serve como bom cartão de visitas, mas há um quê de “tanto faz” em seu bloco que simplesmente não deveria aparecer quando falamos de alguém da família Constantine.

A diferença de ritmo e de impacto narrativo nas duas histórias de The Sandman não tiram da série o fato de ser uma adaptação muito boa, que conseguiu contornar uma porção de dificuldades e armadilhas dramáticas, além de trazer momentos e acertos que serão lembrados por bastante tempo. Falando em ritmo, a montagem dos 6 primeiros episódios é bem mais criteriosa que a dos 4 finais; em compensação, a trilha sonora se mantém elogiável a saga inteira. Acompanhando o Sonho em duas missões, vemos muita coisa sobre os impulsos humanos e como diferentes pessoas e diferentes Perpétuos se relacionam, e o que podem causar uns nos outros. O gancho para a próxima temporada retoma uma briga em continuidade (Sonho vs. Lúcifer) e aponta para mais tormentos no Sonhar. Morpheus passa por uma grande transformação, embora não  demonstre isso rápido. Ainda há muita coisa de seu ego e de sua frieza que seguem fortes (ele não perdoa a rainha Nada, por exemplo), mas sua relação com Lucienne (baita personagem legal, vivida por Vivienne Acheampong), o bebê gárgula que dá para Caim e Abel, a transformação que dá a Gault, a mudança de opinião sobre Matthew (Patton Oswalt, num alívio cômico cuidadosamente utilizado) e o fato de querer compartilhar o controle do Reino com Lucienne indicam essa transformação. Ele jamais perderá a sua essência de ameaçador e amedrontador (a cena com Desejo após a resolução do caso do Vórtice é de arrepiar), mas depois de 100 anos preso, sorvendo o pior da humanidade; depois de uma boa conversa com a Morte e o reencontro com um velho amigo, ele conseguiu tirar alguns véus da frente dos olhos e enxergar a sua e as outras realidades de outra maneira. O Sonho e o Sonhar não são mais os mesmos. Uma nova Era onírica se inicia.

The Sandman – 1ª Temporada (Reino Unido, EUA, 5 de agosto de 2022)
Criação: Neil Gaiman, David S. Goyer, Allan Heinberg
Direção: Mike Barker, Jamie Childs, Mairzee Almas, Andrés Baiz, Coralie Fargeat, Louise Hooper
Roteiro: Neil Gaiman, David S. Goyer, Allan Heinberg, Jim Campolongo, Austin Guzman, Lauren Bello, Heather Bellson, Vanessa Benton, Jay Franklin
Elenco: Tom Sturridge, Gwendoline Christie, Boyd Holbrook, Jenna Coleman, Mason Alexander Park, Kirby Howell-Baptiste, Patton Oswalt, David Thewlis, Joely Richardson, Stephen Fry, Donna Preston, Niamh Walsh, John Cameron Mitchell, Razane Jammal, Sanjeev Bhaskar, Vivienne Acheampong, Nina Wadia, Ferdinand Kingsley, Vanesu Samunyai, Sandra James-Young, Charles Dance, Asim Chaudhry, Souad Faress, Eddie Karanja, Lily Travers, Jill Winternitz, Andi Osho, Lloyd Everitt, Sam Hazeldine, Ernest Kingsley Junior, Melissanthi Mahut, Benjamin Evan Ainsworth, Cassie Clare
Duração: 10 episódios entre 55 e 30 min.

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