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Crítica | Thelma & Louise

por Leonardo Campos
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O poeta estadunidense Walt Whitman foi um dos artistas que mais versou sobre a liberdade. Em um de seus poemas, ele explorou os limites da identidade e da localidade, apontando para a ideia da viagem como uma garantia da constante mobilidade que permite ao ser humano a emancipação nas variadas esferas de suas respectivas existências. A roteirista Callie Khouri, imbuída deste sentimento, escreveu Thelma e Louise, texto que circulou pelo circuito alternativo, sem financiamento, até cair nas graças do cineasta Ridley Scott.

No filme, duas amigas decidem ir pescar nas montanhas durante um final de semana. Elas desfrutam de bons momentos de liberdade, longe das suas obrigações cotidianas (ser esposa e ser garçonete). Durante o percurso decidem parar no Silver Bullet, um bar de estrada aparentemente divertido. Elas bebem, gargalham, divertem-se e até dançam. Até então, o espectador divide as alegrias com a cativante dupla Thelma (Geena Davis) e Louise (Susan Sarandon).

No loca, Thelma bebe além do permitido por seu organismo. É convidada para dançar por um desconhecido. Atraída para o lado externo, é seduzida pelo homem, convidada a ir além dos pequenos afagos (semi) correspondidos, graças aos efeitos do álcool. Ao perceber que o homem pretende ir além, Thelma pede para voltar, pois relação sexual não estava em sua agenda. O homem não obedece, reage, agride-a e demonstra-se um perfeito exemplar do que se convencionou chamar de cultura do estupro.

A situação não acaba bem. Thelma não chega a ser estuprada, mas acaba se metendo numa confusão ainda maior, afinal, ela e a sua amiga faziam parte de um circuito patriarcal que jamais perdoaria alguém por atirar em um homem. Tiro, você pode se perguntar, caro leitor. Pois caso você não conheça o filme, adianto. Após a situação conflituosa, Louise surge para salvar a amiga, ambas acabam atirando no machão, desencadeando o feixe de acontecimentos que vão levar as protagonistas para o acerto de contas na estrada.

Será na estrada que elas vão experimentar um grau maior de amizade. Juntas elas vão buscar lutar contra o opressivo sistema patriarcal, trazendo à tona questões como domesticidade, lei, violência física e simbólica, sexualidade e gênero, numa trama agressiva gerada por uma série de acontecimentos indesejáveis, mas necessários para que elas possam questionar as suas existências. São amigas de longa data, mas será na estrada que a amizade vai se desenvolver com maior grau, através de vivências que as colocam em situações irreversíveis, desaguando no final emblemático.

Esse é o argumento do filme. Após as apresentações, vamos passear pelos outros aspectos do filme? No que diz respeito aos requisitos formais, Thelma e Louise é uma produção que segue com muito respeito os padrões solicitados pela gramática clássica do cinema. A montagem alternada apresenta bem os personagens, costurados por uma rima visual bastante funcional. A trilha sonora é empolgante e a direção musical de Hans Zimmer funciona muito bem.

Com grandes planos e travellings, a captação de imagens orientada pelo cineasta Ridley Scott consegue dialogar com os temas propostos pelo roteiro de Callie Khouri. Ao apresentar enquadramentos mais fechados, revela o subtexto dos diálogos que expressam o sufocamento dos personagens diante da asfixia provocada pela sociedade patriarcal. Em suma, um filme bem escrito, bem dirigido, montado e apresentado ao público através de uma equipe eficiente.

No que tange aos aspectos do roteiro, o filme é considerado pelos especialistas como uma das obras-primas do cinema contemporâneo. Quase todos os manuais, apostilas e listas de roteiros cinematográficos abordam o filme como modelo. O desenvolvimento dos personagens é um dos pontos fortes deste apreço pelo texto do filme. Primeiro que a verossimilhança está bem apresentada ao passo que a narrativa se desenvolve. Em segunda instância, há o brilhantismo da dupla, interpretada por Geena Davis e Susan Sarandon, algo praticamente impossível de não ressaltar.

Louise é autossuficiente, ganha o seu dinheiro trabalhando como garçonete e representa a mulher que não “depende da bondade dos homens, conhecidos ou desconhecidos”.  Segura de si e responsável por sua amiga Thelma, ela é quem segura a dupla nos momentos de cristalização do conflito principal. A famosa selfie com a Polaroid metaforiza a posição da personagem: com o controle da situação em boa parte do tempo, Louise é experiente e sabe liderar, diferente do sorriso de Thelma que sugere inocência e ingenuidade. São estas diferenças, por sinal, que fazem o sucesso da dupla. Elas se complementam. Thelma é um retrato fiel da vida doméstica: casada com um marido narcisista e controlador, a moça integra um grupo de mulheres imbuídas do sentimento de pertença em relação ao lar em que vivem. Carismática e alegre, ela não toma as decisões sensatas, mostrando-se impulsiva na maioria das vezes, mas como apontado no que diz respeito ao roteiro, desenvolve-se e assume as rédeas da situação quando se torna necessário, principalmente depois que cai na real ao refletir sobre a sua agonizante vida doméstica.

A obra dialoga com os elementos do clássico O Herói das Mil Faces, de Joseph Campbell. Ao lado das teorias psicanalíticas de Carl Jung sobre os arquétipos e a ideia de inconsciente coletivo, o autor aponta que todas as histórias estão ligadas por um fio comum. Durante o século XX esta jornada tem servido de base para os profissionais, tais como escritores, dramaturgos e críticos culturais. Segundo essa lógica de pensamento, há a possibilidade de estruturar qualquer histórica a partir da jornada do herói.

A guisa de citação, o 1º (Mundo Comum) e o 2º (Chamado à aventura) tópico da jornada do herói estão explícitos na primeira parte do filme. Inicialmente somos apresentados ao mundo delas, compreendemos as suas realidades, as pessoas com quem convivem diariamente, o seu espaço de sobrevivência e trabalho e logo depois, estabelece o objetivo do jogo e deixa claro o objetivo do herói, no caso, das heroínas, quando estas são “chamadas para aventurar-se” pelo roteiro fílmico, deixando-nos na dúvida se elas escaparão ou não daquela situação.

Outro ângulo a iluminar é a subversão do gênero road movie. Este tipo de narrativa em que a estrada ganha papel protagonista aponta ressonâncias do western. Os temas destas narrativas de estrada geralmente trafegam na via do desejo de liberdade. A temática, por sinal, deu origem a um extenso numero de narrativas sobre o constante sonho americano da mobilidade social. Apesar de constantemente vermos esse tipo de narrativa associada ao clássico moderno On The Road, de 1957, o modelo faz parte de uma tradição literária estadunidense de longa data, tais como Walt Whitman (A Song of The Open Road) e Robert Frost (The Road Not Taken), entre outros.

Thelma e Louise, entretanto, não são as únicas subversivas dos filmes de estrada. Priscila – A Rainha do Deserto, Para Woog Foo – Obrigada por Tudo e Somente Elas são alguns casos que surgiram na esteira da aventura feminina dirigida por Ridley Scott. No caso do último, um road movie divertido e dramático em proporções semelhantes, três mulheres viajam pelo país numa fuga semelhante e acabam por ter uma experiência de amizade muito forte, com direito a punição no final (morte de um dos personagens), afinal, em narrativas assim, em épocas como essa (o turbulento inicio dos anos 1990), era preciso pagar o preço por tamanha ousadia.

Antes de adentrar na esfera contextual de Thelma e Louise, portanto, cabe ressaltar que é importante perceber que apesar de Scott nunca ter levantado oficialmente uma bandeira favorável ao movimento feminista, é fato que em suas obras, as mulheres encontram espaço para serem fortes e determinadas (basta lembrar-se da determinada Tenente Ripley, imortalizada pela ótima Sigourney Weaver, em Alien – O 8º Passageiro).

Em 1991, a sociedade estadunidense estava bastante agitada (como sempre). A Guerra Fria havia alcançado o seu fim nos momentos derradeiros do segundo mandato do controverso Ronald Reagan. George H. W. Bush estava em alta com a popularidade alcançada com a Guerra do Golfo, mas logo perdeu espaço para Bill Clinton, haja vista a crise econômica que acometia a nação símbolo maior do capitalismo no mundo contemporâneo. A economia, a política e a religião eram uma das pautas mais constantes da mídia: nas bases desta tríade, o papel desenvolvido pela mulher em cada um destes espaços era motivo de debate. O filme, então, veio como um importante combustível para alimentar as chamas destas discussões.

Neste ano, a jornalista Susan Faludi causou furor na mídia com o artigo Backblash: The Underclared War Against American Women, pois trouxe à tona alguns mitos sobre a mulher, o mercado de trabalho e a família, além de denunciar o jornalismo como um dos culpados por espalhar falácias sobre a mulher e a sua relação conflituosa com a sociedade machista. Ainda em 1991, o artigo The Beauty Myth: How Images of Beauty are Used Against Women, publicado por Naomi Wolf, problematizava os meios de comunicação, criticados por estarem aliados a outras facções da sociedade, numa espécie de golpe contra os direitos das mulheres.

Na mesma época, o AAUW (American Association of University Women) publicou um relatório apontando o sistema de educação como um dos responsáveis por desencorajar as mulheres a terem sucesso acadêmico, especialmente em áreas tecnológicas e no campo das ciências exatas, tais como a Matemática. Assim, percebemos que a década de 1990 não começou nem um pouco fácil para as questões de gênero. Era preciso muita luta, e o cinema, por sua vez, colaborou bastante com as discussões.

Diante do exposto é possível perceber que Thelma e Louise é um dos casos raros no sistema de produção hollywoodiana: o protagonismo machista é deixado um pouco de lado,  com o foco no desenvolvimento de duas personagens que evoluem ao passo que os fatos surgem na tela. O filme causou controvérsias pelo fato de duas mulheres estarem num gênero dominado por homens. Por isso, colecionou críticas positivas e negativas, balizadas pelas polêmicas que pendiam a narrativa para todos os lados.

Ao longo dos seus 129 minutos, Thelma e Louise mostra-se uma narrativa sobre emancipação que encanta e nos faz refletir, nos dias atuais, sobre os papeis que foram determinados para as mulheres encenarem na sociedade: o lado coadjuvante da cena, sempre à sombra das vontades de uma existência que gravita em torno do patriarcalismo. Elas mostraram que seriam diferentes, mesmo tendo que pagar o preço que pagaram.

O filme ganhou o Oscar e o Globo de Ouro na categoria Melhor Roteiro Original. No caso da primeira cerimônia, teve o prestígio de ser nomeado aos prêmios de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz (Geena Davis e Susan Sarandon), Melhor Edição e Melhor Fotografia. Com mais de duas décadas e profusão de narrativas que tentam emular a sua fórmula, o filme ainda continua forte: é bastante citado no bojo dos estudos acadêmicos, bem como nas reportagens sobre liberdade feminina.

Thelma & Louise (Thelma and Louise) – EUA, 1991.
Direção: Ridley Scott.
Roteiro: Callie Khouri.
Elenco: Geena Davis, Susan Sarandon, Harvey Keitel, Brad Pitt, Michael Madsen, Christopher McDonald, Stephen Tobolowsky, Timothy Carhart.
Duração: 129 min.

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