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Crítica | Tintim e a Alfa-Arte

por Ritter Fan
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Fazer a crítica de Tintim e a Alfa-Arte deixa, inevitavelmente, um gosto agridoce na boca. Afinal, esse é o álbum que Hergé jamais acabou. É o álbum publicado, pela primeira vez, três anos após sua morte em 1983 por uma doença que já lhe acometia há anos e que detalhes nunca foram revelados (talvez leucemia). Sua morte acabou sendo apressada quando ele contraiu o vírus HIV por meio de uma de suas transfusões de sangue semanais.

Em entrevista dez anos antes, Hergé havia dito à Numa Sadoul, que “Depois de mim, não haverá mais Tintim. Tintim é minha criação – meu sangue, meu suor, minhas entranhas.” Apesar desse desejo expresso, o principal assistente de Hergé, diante de algo como 150 páginas de esboços, desenhos e roteiros inacabados, manifestou a vontade de pelo menos acabar Alfa-Arte como um tributo ao mestre. Por algum tempo, Fanny Remi, viúva de Hergé, concordou, mas não demorou muito para ela voltar atrás e determinar que o trabalho deveria permanecer intacto. O máximo que ela autorizou foi a seleção e compilação do material em alguma ordem lógica, para publicação póstuma, gerando o 24º, mas incompleto álbum d’As Aventuras de Tintim. Apesar de existirem diversas versões finalizadas do álbum, são, todas elas, desautorizadas e não-canônicas.

Diante de tudo isso, e por ter feito a crítica do primeiro e ainda muito “primitivo” álbum, Tintim no País dos Sovietes, eu e o verdadeiro responsável pelo Especial As Aventuras de Tintim, Luiz Santiago, decidimos que talvez eu devesse fechar os trabalhos, ainda que não seja um verdadeiro expert no personagem ou mesmo um grande apreciador, apesar de ter lido todos os álbuns. E, com isso, ficou ao meu encargo a melancólica tarefa de criticar e julgar um trabalho que existe pela metade e que foi publicado depois da morte de seu brilhante autor.

Mas assim é a vida.

Tintim e a Alfa-Arte, apesar de ser um álbum incompleto, é, como a introdução do álbum deixa clara, bem mais que um mero projeto. Em termos da arte, o que vemos é sim, talvez, o estágio inicial de desenvolvimento do trabalho, mas, em termos de roteiro, Alfa-Arte é muito avançado.

Tudo começa em Moulinsart, com o capitão Haddock acordando de um pesadelo com Madame Castafiore, somente para a própria ligar para ele e Tintim para dizer que pretende visitá-los. Haddock, aturdido pela notícia, sai de sopetão para desanuviar a mente, mas acaba dando de cara com Castafiore e, desesperado, entra na primeira loja que vê. Na verdade, porém, é uma galeria de arte onde aprende sobre a “Alfa-Arte”, nada mais do que arte moderna galgada no alfabeto. Mas era justamente para lá que Castafiore estava indo e, depois de muitas trapalhadas, Haddock acaba comprando, a contragosto, um “H” esculpido por Ramo Nash.

A partir daí, Tintim se envolve em uma investigação sobre as mortes suspeitas de dois especialistas em arte que fazem avaliação de obras. Um deles, o senhor Fourcart, conhecera Haddock na galeria e dissera que gostaria de conversar com Tintim, mas acaba morrendo em acidente de carro antes do encontro. Suspeitando da coincidência, já que outro avaliador morrera há pouco tempo, o jovem repórter, sempre acompanhado de seu fiel cão Milu, tenta montar o quebra-cabeças das “mortes acidentais”, somente para desvelar uma conspiração de falsificação de obras de arte envolvendo Nash e um estranho guru da “saúde e magnetismo” chamado Endaddine Akass.

A história tem todos os elementos que consagraram as aventuras do topetudo repórter: investigação, ação, personagens curiosos e um forte laço de amizade entre Tintim, Milu e Haddock. E isso sem contar com a presença constante de diversos coadjuvantes, como os engraçados Dupond e Dupont e, claro, a insuportável Madame Castafiore.

É interessante notar que Alfa-Arte tem um forte tom de despedida, pois Hergé faz questão de reunir o maior número possível de personagens de sua longa jornada criativa, incluindo Sakharin (O Segredo do Licorne), o senhor Gibbons (O Lótus Azul), o senhor Chicklet (O Ídolo Roubado) e grande elenco. Apesar de não ser a primeira vez que Hergé faz isso, a concentração, em Alfa-Arte é, no mínimo, curiosa. No entanto, o papel desses coadjuvantes não é nada desenvolvido – lembre-se, estamos falando de uma obra inacabada! – e eles estão lá mais para constar do que para qualquer outra coisa. Não há como saber o que Hergé pretendia com eles, se é que pretendia alguma coisa além de desfilá-los para a diversão de seus leitores.

A trama progride bem, com alguns trechos talvez desproporcionalmente longos, mas o material que vemos e que foi cuidadosamente numerado por Hergé, é mais do que suficiente para vislumbramos o caminho que ele tomaria. Mas claro, ficará para a imaginação de cada um como Tintim, Milu e Haddock conseguirão se safar de mais essa aventura, já que, assim como as melhores séries de TV, o último quadro da narrativa é, literalmente, um cliffhanger.

Em termos organizacionais, o álbum é muito bonito. Do lado esquerdo das páginas, vemos o diálogo escrito por Hergé devidamente dividido em pequenos capítulos. A ilustração se dá com a reprodução dos esboços do autor, em francês, com seus comentários, riscos, correções. As páginas variam muito em termos de acabamento, com algumas – muito poucas – já com arte-final, mas sem cores e outras muito no início ainda, com muito mais falas manuscritas do que qualquer outra coisa. É um cativante exercício de mergulho na mente de um dos mais importantes autores de quadrinhos que já viveu e que é ajudado por um material extra, ao final, fora da narrativa principal, que nos permite outros vislumbres do que ele imaginou fazer. É um quebra-cabeças interessante e gostoso de acompanhar.

O grande problema, para mim, foi a pequena quantidade de páginas esboçadas por Hergé que foram publicadas no tamanho da página do álbum. A maioria dos esboços que vemos pontilhando o álbum é de versões reduzidas da arte, que dificultam – às vezes impossibilitam completamente – a leitura do original em francês na letra de Hergé. Não vi razão alguma para que as páginas diminutas não aparecessem em seu glorioso tamanho natural. Economia de espaço? Talvez, mas convenhamos que o fã de Tintim que se dispusesse a pagar por um álbum de esboços de uma obra inacabada pagaria um pouco mais por ilustrações maiores, que permitisse a leitura integral da obra.

Sim, há muita página em que os personagens não são mais do que alguns rabiscos sem quaisquer detalhes ou sem qualquer imagem de fundo, mas e daí? Esboços são esboços e um fã entenderia perfeitamente e adoraria esmiuçar as imperfeições do trabalho de Hergé. Do jeito que ficou, porém, só com muita boa vontade e uma lupa, além de um bom conhecimento de francês.

Tintim e a Alfa-Arte provavelmente seria um álbum muito bom de Hergé, talvez no mesmo nível dos dois anteriores. Nunca saberemos ao certo, mas o que já foi publicado oficialmente nos permite vislumbrar o que teria sido. É claro que o resultado final do álbum em si poderia ter sido melhor se as páginas originais tivessem sido reproduzidas em tamanho maior. Uma coisa é absolutamente certa, porém, o mundo da 9ª Arte perdeu um de seus grandes nomes, ainda completamente lúcido e capaz de deslumbrar seus leitores.

Obs: A avaliação (estrelas) acima leva em consideração a experiência como um todo, ou seja, não só o trabalho de Hergé em si como, também, a organização do álbum.

As Aventuras de Tintim – Tintim e a Alfa-Arte (Tintin et l’Alph-Art) – Bélgica, 1986
Roteiro: Hergé
Arte: Hergé
Editora (originalmente): Casterman
Editora (no Brasil): Cia. das Letras
Páginas: 64

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