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Crítica | Todas as Mulheres do Mundo (1967)

por César Barzine
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Um filme que respira ares de Nouvelle Vague, Todas As Mulheres do Mundo entrega um clima totalmente inserido ao cinema moderno mesmo estando desencaixado do Cinema Novo. É uma obra com traços godardianos, cheia de maneirismos e um espírito jovial que produz um charme em sincronia com o cenário brasileiro. Domingos de Oliveira apresenta um longa completamente inventivo ao retratar com uma sensualidade única a pequena burguesia carioca. Sem dúvidas, um dos filmes mais expressivos sobre relações afetivas. Não que ele seja um romance, mas sim uma comédia dramática que realiza um pequeno estudo dos personagens com seus desejos e paixões. Aliás, na maior parte do tempo, o filme é um verdadeiro anti-romance, colocando a tradição amorosa como um valor arcaico em prol do hedonismo e da aspiração masculina de ter todas as mulheres do mundo.

Quem é a pessoa mais relevante do mundo na sua opinião?“, pergunta uma moça. “James Bond“, responde Paulo. Este, um boa-vida apaixonado pelas mulheres. Paixão mantida no plural mesmo, já que, para ele, é impossível se manter preso ao singular e dispensar as tantas outras mulheres disponíveis por aí. Assim surge a sua escolha por James Bond, o galã que é o arquétipo moderno da masculinidade. Não o ideal de homem para as mulheres, mas para os próprios homens. Apesar disso, uma mulher acaba se destacando para Paulo: a bela Maria Alice. Apresentada numa cena sublime em que a edição e a narração descrevem ela sob a ótica do desejo de Paulo, seu corpo é exposto em vários planos detalhes enquanto Paulo evoca um poema sobre ele. Maria é namorada de Leopoldo, um cavaleiro não muito masculinizado, mas simpático e que possui a estima dela. Mesmo assim, nosso Don Juan não perde a chance de conquistá-la e, depois de um pouco de insistência, a ganha, superando a relação que ela tinha com Leopoldo. Um novo casal se forma, porém estaria mesmo Paulo disposto a abandonar as muitas outras mulheres acessíveis ao seu redor?

Todas As Mulheres do Mundo apresenta uma energia raramente vista na história do cinema nacional. Há um enorme vigor nos planos e nas cenas que constituem o filme, isso sendo movido pelo frescor daqueles corpos, olhares e beijos; pelas palavras que expressam a cordialidade do querer ou da amargura; e pela técnica extremamente engenhosa, formada através do dinâmico trabalho de decupagem e montagem. O que dá uma certa adrenalina ao longa pela conexão entre os constantes desdobramentos do roteiro, com tramas estimulantes que contribuem para um filme extremamente ágil.

O que só seria possível com essa junção formidável entre o roteiro que tem um desenvolvimento muito extenso com a execução que consegue resumir todo esse conteúdo. Tal processo não ocorre através do recorte, mas pela ação, pela agilidade criada no choque dos diversos aspectos do filme. Assim como as ligações amorosas dos personagens são flexíveis, a edição também acompanha essa abordagem, deixando o filme tão dinâmico quanto a vida dessas pessoas. Os saltos de um plano para o outro são dotados de uma espontaneidade mesmo ocorrendo em constante frequência, sendo uma harmonia resultante de um agrupamento versátil de situações. As idas e vindas dos personagens ocorrem num desenvolvimento orgânico, formando um turbilhão de casos que se ordenam entre si. Tudo isso rende um ritmo bem empolgante de se acompanhar, no qual a ação presente entra em sintonia como uma série de maneirismos. São sínteses que, em seu conjunto total, criam um filme cativante e eufórico.

Também como componente da unidade formal de Todas As Mulheres do Mundo, há o trabalho de câmera, que contribui igualmente para a animação da obra. No campo intimista da história, a decupagem encontra lugar em enquadramentos mais fechados, dando uma intensidade maior para os beijos do casal capturados em closes. Já em festas, reuniões e outros momentos de entusiasmo, a câmera utiliza-se de planos mais abertos, se movimentando na profundidade do zoom, principalmente quando os personagens também se movem, oscilando a dinâmica da decupagem. O momento mais nítido dessa flexibilidade da câmera é quando o triângulo amoroso (Paulo, Maria e Leopoldo) se encontram numa mesa e a câmera gira completamente diversas vezes em volta dela.

E em meio a essas festas, beijos e namoros, o trabalho de Domingos de Oliveira soa quase como uma dança, uma combinação vibrante de movimentos sensíveis que liberam uma espécie de força dionisíaca tão excitante quanto espirituosa. Trata-se de um filme “do corpo“, mas que, partindo disso, provoca uma dualidade entre o casal. Maria, uma pessoa dócil, representa a pureza do amor jovial. E Paulo, um boêmio, carrega o estigma da busca desenfreada por prazer e, principalmente, do “ter“, de colocar sobre seu domínio alguma figura feminina. A contradição desses dois arquétipos estoura com a traição de Paulo, exposta por Domingos de Oliveira como se fosse mais um dia qualquer na vida dele. Mas como Maria é a mulher que ocupa a posição de “singularidade” para sua pessoa, ele percebe o valor unidimensional na vida amorosa, dispensando a sua ânsia que reduzia as mulheres a um grupo genérico de bens de consumo.

Paulo é quase que um mito dentro do filme, uma figura que, assim como James Bond, é exaltada e vista como o sujeito bem de vida, que sempre leva a  melhor. Esta característica traz uma comparação com Boca de Ouro, em que essa certa malandragem e a companhia de várias mulheres formam uma mitologia em volta do protagonista homônimo. Tal tipo de glamourização não se encontra em Os Cafajestes, que, como o título diz, tem como personagens principais homens em que não se é possível criar laços sólidos, e assim não ocorre nenhum tipo de romanização. Outra comparação possível é com O Bandido da Luz Vermelha. Este, apesar de focar na miséria e na marginalidade, possui uma narrativa semelhante a Todas As Mulheres do Mundo. Na obra de Domingos há uma abordagem cartunesca – assim como o espírito anárquico do filme de Sganzerla – em que a montagem joga algumas cenas alheias à progressão da trama, posicionado elas bem no centro das sequências – ou dividindo elas. A declaração de amor a Maria, as filmagens de um filme mudo, os dois jogando sinuca etc. São imagens diversificadas que vêm aos olhos do espectador, gerando, com tamanha engenhosidade, uma hiperatividade dentro do longa.

Paulo José (o ator) realiza uma interpretação equilibrada, sem cair em exageros ou caricaturas. Seu personagem é carismático e desperta a afinidade do espectador. E Leila Diniz, com sua beleza arrasadora, vem acompanhada de roupas típicas de uma classe média dos anos 50/60. São trajes formais, mas que manifestam um ar juvenil.  Esses dois fatores estéticos, juntos com a sua simpatia e jeito dócil, constroem uma personagem encantadora, charmosa e de vidrar os olhos. Diniz possui uma atuação leve, angelical, exalando uma graciosidade sempre que está em cena.

Lançado em 1967, o longa é um verdadeiro manifesto das mudanças comportamentais que o mundo sofria, indo da passividade do conservadorismo para uma liberdade bem mais flexível entre os costumes. Com isso, homens e mulheres transam sem medo, e Domingos de Oliveira torna esse fator mais do que um testemunho dessa transição social: é uma cativante obra que apresenta um exercício de sociabilidade no campo afetivo. Há aqui o drama do amor, o brilho da paixão e o calor do sexo. Mas, assim como o próprio filme está sempre se alterando, os conflitos do amor se invertem e conquistam o mesmo brilho da paixão. Pois como Maria disse: “o amor é um objeto a ser cuidado por duas pessoas“. E para Paulo, agora um homem revigorado, essa outra pessoa só pode ser Maria Alice.

Todas As Mulheres do Mundo – Brasil, 1967
Direção: Domingos de Oliveira
Roteiro: Domingos de Oliveira, Eduardo Prado (contos)
Elenco: Paulo José, Leila Diniz, Flávio Migliaccio, Joana Fomm, Ivan de Albuquerque, Irma Álvarez, Fauzi Arap, Isabel Ribeiro, Luiz Carlos Braga, Marieta Severo, Maria Gladys, Norma Marinho, Vera Vianna, Nazareth Ohana
Duração: 86 minutos.

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