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Crítica | Tom Strong – Vol.1: A Origem

por Luiz Santiago
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Se você tem uma empresa que de quadrinhos que surgiu com o ideal de “fazer a diferença na indústria”, não é nada incoerente que crie o máximo de situações possíveis para que esta diferença seja feita. Assim foi com Jim Lee, dono da WildStorm, à época, ligada a outra editora que “surgiu para fazer a diferença”, Image Comics. O acordo de Lee com Alan Moore, para a produção de “mais quadrinhos que fizessem a diferença”, foi o de liberdade absoluta para a criação do que o Mago quisesse fazer. Então, pela WildStorm, surgiu o selo America’s Best Comics, do qual o barbudo inglês seria proprietário. Dessa empreitada vieram à luz, já no ano de estreia do selo, em 1999, A Liga Extraordinária, Promethea, Tomorrow StoriesTop 10 e Tom Strong.

Tudo em TS cheira a homenagem à Era de Ouro e início da Era de Prata dos quadrinhos, tendo na literatura, rádio e quadrinhos pulp a sua principal coluna. Moore sempre definiu Tom Strong como um “herói da ciência”, propositalmente para diferenciá-lo do comum “super-herói”. A relação do personagem com a temática central de Doc Savage é imensa, mas outros personagens da época (Tarzan, Flash Gordon, Fantasma, Domino Lady, Mandrake, Tom Swift) também são homenageados ou aludidos no texto, nas capas e na arte principal e secundária das revistas, sempre trazendo um estilo de angulação e mesmo de finalização levemente diferentes, sendo o mesmo processo observado na aplicação de cores e no letramento. Na parte visual, a maior constante acaba sendo mesmo a diagramação.
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Como Tom Strong Começou

How Tom Strong Got Started

…No qual uma origem é revelada, um crime aéreo é perpetrado e TOM ganha um novo fã.

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Capa de Alex Ross e Família Strong: Tom, Dhalua, Tesla, Pneuman e Salomão.

Homenageando o Universo de Doc Savage desde a capa de Alex Ross para esta edição de estreia, a série Tom Strong traz o início de seu protagonista em uma sequência de eventos que começa com um naufrágio nas Índias Ocidentais, em 1899, onde o casal Sinclair e Susan Strong chegam à Ilha de Attabar Teru, habitada pelos Ozus. A narrativa aventuresca do roteiro nos insere na trama via duas camadas básicas, a primeira, de modo metalinguístico, com o garoto Timmy Turbo, morador de Millennium City, recebendo pelos Correios (provavelmente com 1 semana de atraso) o kit dos Strongmen da América, com o exato exemplar da revista o que leitor está nas mãos. A nossa ligação com o personagem é imediata, porque ele nos representa aqui, e puxando esse gancho, Alan Moore nos faz mergulhar na epopeia de Tom Strong, que está dividida em 4 blocos, sendo o tempo presente o mesmo que o de Timmy (ou Membro 2059 dos Strongmen) lendo a revista Tom Strong #1 a caminho da escola.

Os outros três blocos servem para nos contar momentos distintos da carreira do homenzarrão, começando em A Ilha Fabulosa (The Fabulous Island), com a chegada dos Strong a Attabar Teru, o início do experimento (a criança!), o nascimento de Tom, em 1º de janeiro de 1900 e sua criação em um ambiente de alta densidade, propiciado por uma câmara hiperbárica. Aí descobrimos que os Strong tinham a intenção de criar um tipo de super-homem, um filho que tivesse gigantesco intelecto, gigantesca capacidade de invenção, super-força, longevidade estendida (pelo consumo de uma raiz chamada Goloka) e valores incorruptíveis. Moore não “perde tempo” falando sobre as possíveis implicações morais que esse tipo de experimento com um filho e criação poderiam ter. Como o garoto não é maltratado de nenhuma forma, o leitor apenas estranha o afastamento dos pais e o seu intento experimental, para começo de conversa, mas é só.

Quando a revista começa, nós temos um texto de duas páginas chamado Nascido Com o Século: Tom Strong e Sua Cidade (Born With the Century: Tom Strong and His City), com uma narrativa jornalística que nos conta a história deste Universo entre os anos finais do século XIX e os anos finais do século XX, narrando a construção da cidade de Millennium City, as ações vilanescas de Paul Saveen e basicamente, os principais acontecimentos na vida de Tom Strong durante os seus primeiros 100 anos de vida. Pois é. Sabendo já uma porção de coisas que Tom Strong viveu antes mesmo de começar a história em quadrinhos, o roteiro nos prepara para uma jornada que não irá se apegar à linearidade, pulando tempos dentro de uma mesma narrativa, brincando com estilos de construção de textos nos anos 40, 50 e 60 e utilizando a frase “Uma História Não Contada de Tom Strong” como um anúncio que gera alta expectativa no leitor, todas elas perfeitamente correspondidas.

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Timmy recebe a revista em casa. O casal Strong com Pneuman, em Attabar Teru.

Em O Terremoto (The Earthquake), temos o evento natural que destrói parcialmente o vulcão inativo onde a base dos Strong estava, fazendo Tom chegar à sociedade pela primeira vez, em um momento bastante triste do enredo; e em Primeiros Anos (His Early Years), vemos algumas ações heroicas, o casamento de Tom com Dhalua Omotu-Strong e a paternidade, com o nascimento de sua filha Tesla, momento em que também é somado à família o gorila civilizado Rei Salomão (King Solomon). Fluído, divertido, com excelentes concepções artísticas e de coloração para cada tempo, além da criação de inúmeras possibilidades para o herói, esta edição de estreia começa a série Tom Strong com aquilo que Alan Moore mais sabe fazer: contar uma história de maneira tão inteligente e tão rica, que o leitor não quer mais largar o quadrinho.

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A Volta do Homem Modular e Noites Astecas

Return of the Modular Man e Aztech Nights

…No qual a família aparece, TESLA ganha novas amizades e TOM fala com um velho conhecido. E …No qual uma cidade vira ouro, uma tecnologia alternativa ataca e TOM encontra um aliado ímpar.

Em termos de apresentação de problemas, essas duas edições talvez sejam as mais plácidas de todo este primeiro volume de aventuras de Tom Strong. Nas duas ocasiões, Tom se encontra com vilões que possuem desenvolvimento e destinos baseados na diplomacia, não sem algum tipo de manifestação inicial de força, mas aqui, a ação não está ligada a um mano-a-mano a qualquer custo, como será o arco com as nazistas, mais adiante. O autor escreve histórias em que a análise de variantes e o questionamento da própria existência são colocados em cena pelos vilões, como o Homem Modular (uma clara bucha de canhão — embora bastante engenhosa — na vida de Tom Strong) e para Quetzalcoatl-9, o Deus-Serpete-eletrônico de um Império Asteca de outra dimensão e com pretensões colonizadoras, tal qual a dos espanhóis em nossa realidade.

Destacarei duas cenas aqui para comentar. A primeira, de A Volta do Homem Modular. Na reta final, quando o vilão está espalhando suas caixas com perninhas de aranha por toda a cidade, acontece esse diálogo entre ele Tom (só os dois):

__ Destrua-me e, em cinco anos, voltarei a crescer no Japão…

__ Então o destruirei no Japão. E um ano depois você volta a crescer na Rússia. Não me parece uma boa vida artificial para você. Períodos de consciência breves, quem sabe uma semana em 2009, talvez três dias em 2025… sem que jamais o deixem ficar maior que o bairro antes de mandarem os bombardeiros. É esse o tipo de futuro que você quer?

__ Não. Então me diga. O que você sugere?

__ Pensei que nunca fosse perguntar.

A compreensão de Tom para com as vontades do vilão é um dos elementos que mais me tocaram aqui. Moore sabe muito bem que a vantagem de escrever um material que flerta com o convencional, mas não o imita na maneira de fazer as coisas, é subverter o ideal que normalmente se tem de batalhas e até da vitória de um herói sobre um inimigo, lição que o próprio Strong comenta com a filha no fim da trama, com a acertada “lição de moral” que essas narrativas normalmente trazem, mas dentro de uma perspectiva, no mínimo, épica. Em Noites Astecas a conversa é ainda mais interessante, pois temos o Deus-eletrônicos se voltando contra Montezuma. Em um diálogo de troca de vantagens com Tom, a Serpente deixa o leitor desconfiado o tempo inteiro, incrementando o suspense da história. Surge mais um excelente diálogo:

__ Então… e agora?

__ Agora retiro a presença asteca da tua Terra e envio de volta aos locais de origem a ti e os edifícios capturados. Os outros 2057 mundos, manterei sob uma teocracia benigna. Por quê? O que esperavas?

__ Não sei. Na MINHA Terra, a Serpente muitas vezes simboliza a perfídia. Você podia ter me matado e então continuado a escravizar o Multiverso.

__ Sim. Da mesma forma, quando te libertei das amarras, podias ter simplesmente fugido. Mas CONFIEI em ti… e confiastes em mim. Existe um problema lógico chamado Dilema do Prisioneiro. Comporta duas estratégias: CONFIANÇA e TRAIÇÃO. A análise revela que a confiança leva a resultados um pouco melhores. A confiança é lógica. Que tu e teu mundo sigam em paz.

Vejam que a resolução do problema sequer passa por um tipo clássico de ameaça. No início, o texto sugeria isso, mas depois, a narrativa muda para um diálogo de ares sociopolíticos e com toda a pinta de drama existencialista. Um diálogo, não um debate! Não há a tentativa de converter, de mostrar que um lado é melhor que o outro. Tom e Quetzalcoatl-9 sabiam exatamente o que eram e o que queriam. E a forma como eles conseguem finalizar isso não poderia ter sido mais perfeita.

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Meninas da Suástica e Lembranças da Pangeia

Swastika Girls! e Memories of Pangaea

…No qual uma mensagem é entregue, uma história não contada é revelada e TOM reacende uma velha chama. E …No qual começa uma longa jornada, um ousado experimento é relembrado e TOM descobre um profundo ardil.

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Aqui retornam as subdivisões narrativas que observamos na edição de estreia. Também há uma mudança no tom das histórias, com um pendor mais ligado à ação — colocadas em distintas medidas, dependendo do vilão/ambiente em que o protagonista luta. Ao contrário o padrãozão enjoativo dos heróis convencionais, Tom se comporta e usa coisas diferentes em cada um dos covis visitados, como se fosse um herói diferente para cada ação… é impressionante — abrindo as portas para algo que seguirá até o fim do volume: a relação entre Tom e Ingrid Weiss, nazista que o herói encontra pela primeira no final da Segunda Guerra Mundial, em uma trama secundária narrada aqui com o título de Berlim, 6 de junho de 1945, com arte de Arthur Adams — vale lembrar que o ótimo trabalho de Chris Sprouse, com finalização de Al Gordon e cores de Tad Ehrlich sustenta a linha principal da saga e apenas uma parte das paralelas. As tramas secundárias trazem artistas convidados para dar outra identidade visual ao tempo e espaço ali narrados.

Há uma mistura de pulp com noir e suspense de guerra nessas edições, e Alan Moore escreve com tanto cinismo os diálogos, que nós sabemos que existe muito mais coisa para ser contada, mas ele faz questão de nos esconder. Na dupla final de edições, teremos uma revelação que fecha o arco aqui aberto, criando, a princípio, uma “perseguição dentro de uma perseguição“, mas então descobrimos que tudo faz parte de um articulado plano para destruir Tom. Na edição Lembranças da Pangeia, também há uma pequena história interna, chamada Fuga do Éden (Escape from Eden!) desenhada por Jerry Ordway. Essa história é um misto das aventuras de terror e sci-fi B dos quadrinhos dos anos 50 e 60, somadas às tramas das “aventuras da selva“, algo que o autor consegue desenvolver sob uma linha de pensamento identitário e de pertencimento que logo mais seria retomada de forma íntima para Tom.

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A Mão do Morto e Filhos e Herdeiros

Dead Man’s Hand e Sons and Heirs

…No qual uma mão firme é revelada, uma ardente armadilha é revisitada e TOM fica sabendo um segredo de família. E …No qual TOM pensa no futuro, seus inimigos brilham no passado e DHALUA lida com 0 presente.

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O ciclo se fecha aqui, de maneira impecável. Depois do encontro com o Pangeano, Tom Strong entra no que parece ser um inferno astral tardio, com o retorno de Paul Saveen (na verdade, Denby Jilks) e a apresentação de Albrecht, ninguém menos que o filho de Tom com fräulein Weiss. O roteiro equilibra um drama familiar fortemente ancorado no comportamento de Dhalua — o que ela faz no final é incrível! — e ainda consegue estender tentáculos disso para um experimento, desta vez imoral, com a presença de uma criança que Tom não sabia existir, mas que de fato, é seu filho, fruto da missão em Berlim, em 1945. E novamente, duas histórias paralelas adicionam conteúdo à linha maior. A primeira, Onda de Calor (The Big Heat?), com arte de Dave Gibbons e cores de Mike Garcia. Já a segunda, Tom Strong 2050: Duelo na Cidade Luzidia (Tom Strong 2050 A.D.: Showdown in the Shimmering City! — pegaram a referência à revista 2000 A.D.?), tem arte de Gary Frank, finalização de Cam Smith e também cores de Garcia. Em ambas as edições, temos vertentes diferentes das aventuras da Era de Prata, flertando um pouquinho com a relação Superman-Lois e os dilemas de Adam Strange.

Pensado como um bloco de histórias que desse conta de um século inteiro de um longevo herói da ciência, este arco, formado pelas 7 primeiras edições de Tom Strong, é um perfeito exemplo de como um gênero pode dar à luz a tantas coisas autorais e aplaudíveis, mesmo depois da comprovada saturação de sua base. Passando do enfrentamento bruto para o diálogo e então para consequências que afetam diretamente a vida pessoal do herói e mexe com os seus valores de homem e pai, Tom Strong termina a última edição no Ano-Novo de 2000, mais uma forma inteligente e quase lírica, dado o contexto, de terminar o arco: com o nascimento de um novo momento e a chegada do terceiro dígito na idade desse centenário musculoso que não parece ter mais que 40 anos. Salve, salve, Tom Strong!

Tom Strong: A Origem (EUA, junho de 1999 a março de 2000)
Publicação original: America’s Best Comics #1 – 7
No Brasil: Tom Strong N°1 (Panini, 2016)
Roteiro: Alan Moore
Arte: Chris Sprouse
Arte adicional: Arthur Adams, Gary Frank, Cam Smith, Jerry Ordway, Dave Gibbons
Arte-final: Al Gordon
Cores: Tad Ehrlich, Michael Garcia, Wildstorm FX
Letras: Todd Klein, Typeset
Capas: Alex Ross, Chris Sprouse, Art Adams, Tad Ehrlich, Jerry Ordway, Dave Gibbons, Gary Frank
Editoria: Scott Dunbier, Eric DeSantis
212 páginas

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