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Crítica | Torto Arado, de Itamar Vieira Junior

Tenebrosos ecos da escravidão num arrebatador romance da literatura brasileira contemporânea.

por Leonardo Campos
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Pode uma subalterna falar? E duas? No desenvolvimento de Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, merecido romance premiado deste Geógrafo e Doutor em Estudos Étnicos e Africanos, o leitor encontrará Belonísia e Bibiana, duas das tantas representantes das vozes e memórias silenciadas ao longo de nossa história a narrar as suas trajetórias de angústias, desejos, impressões diante da condição social análoga ao processo de escravidão que ainda parece imperar em nosso território, mas com outros nomes perversos e disfarçados. Descentes da escravidão, tal como o escritor que tece poeticamente cada parágrafo desta obra-prima da literatura brasileira contemporânea, um texto que dialoga com os elementos do que a crítica denominou de Romance de 30, mas constrói um sertão mais realista, diferente da terra gretada, dos tenebrosos raios solares que queima a pela e devastam a paisagem. Em sua escrita engenhosa, delicada e coesa, o autor, em seu lugar de fala, haja vista a experiência no INCRA e as pesquisas meticulosas ao longo de sua formação acadêmica, ele reflete sobre uma herança de desigualdades que não é, como já mencionado, coisa do passado, mas uma dura e absurda realidade do nosso estarrecedor tempo presente.

O interessante, todavia, é que nesta jornada de dor e miséria apresentadas em Torto Arado, o escritor pavimenta um caminho de esperança, ao menos é o que conseguimos interpretar diante das situações vividas pelas duas personagens. Solapadas pelo determinismo que insiste em enraizá-las conforme as condições do meio, ambas conseguem driblar os destinos estabelecidos e desenhar outro panorama para as suas respectivas trajetórias. Quando ainda eram crianças, Belonísia e Bibiana brincavam e resolveram mexer numa misteriosa mala de sua avó, Donana, uma mulher cheia de mistérios e sabedoria. Lá havia uma faca, guardada com cuidado, para que ninguém se machucasse. Afiado, o objeto físico, mas também alegórico, é parte de uma terrível situação ainda muito viva nas memórias da avó. Descuidadas, as meninas brincam com o perigo e uma delas acaba tendo a língua decepada. A descrição do trecho é impressionante, bastante gráfica, ótimo ponto de partida para a criação de algo cinematográfico.

Deste ponto trágico, a história segue o seu percurso, dividida em três capítulos, isto é, Fio de Corte, Torto Arado e Rios de Sangue, todos num ritmo de ótima cadência, mantendo a tradição do tríptico literário, com cada passagem sendo assumida por um narrador diferente. Os narradores explicam os seus pontos de vista, interpretam comportamentos e paisagens, traçam associações entre os acontecimentos e conseguem nos fazer imergir nas andanças que demarcam as experiências de cada um deles. A língua, decepada no preâmbulo, permite que possamos refletir sobre os diversos silenciamento de pessoas da vida real, espelhadas nos personagens subalternizados de Torto Arado. A faca afiada que corta as chances comunicacionais de uma é o equivalente aos discursos dominantes que colonizaram, dominaram e supostamente aboliram os tantos povos oriundos da escravidão, jogados num contexto sem a devida reparação histórica até os nossos dias atuais.

Alegorias, por sinal, não faltam ao longo das 262 páginas deste romance. A misteriosa onça, delineada em poucas passagens, pode ser considerada uma delas. De volta ao romance, Bibiana e Belonísia são filhas de Zeca Chapéu Grande, um líder comunitário espiritual, homem respeitado pela população da região que possui apego aos elementos religiosos das noites de Jarê, uma espécie de mixagem de traços do catolicismo, candomblé, umbanda, xamanismo e espiritismo. Ele é um homem da terra, munido do tal torto arado que representa a herança de escravidão que domina o povo de Água Negra, um agrupamento que não pode construir casas de alvenaria, apenas de barro, pois os proprietários rurais não almejam a fixidez destes indivíduos em suas terras. Sem salário, os personagens labutam em troca de um pedaço de chão para morar e cuidam das roças com o propósito de se alimentarem daquilo que o local oferece, sempre com a condição de deixar os melhores itens da safra para os tais proprietários.

Ao passo que a narrativa avança, observamos o quão Belonísia e Bibiana agem contra as forças que reagem em prol do mencionado determinismo traçada para suas histórias de vida. Uma delas se torna parte de um sindicato, a outra batalhava diante do machismo de uma sociedade fincada no discurso opressos do patriarcado, sem saber exatamente que estava munida de uma postura politizada. Elas gravitam em torno da prosa enxuta de Torto Arado, escrita acompanhada de dualidades numerosas, dentre as mais proeminentes, a relação entre cidade e campo, fertilidade e infertilidade, coragem diante do medo, etc. Bibiana, com o seu sonho de ser professora, embarca numa jornada para concretizar o seu desejo. É uma fuga, diferente de Bibiana, mulher que vê nos ensinamentos de sua figura paterna o projeto de educação que lhe interessa. Uma consegue ter filhos, a outra é domada pelas privações de um corpo infértil. Todas estas poderosas experiências são assertivamente delineadas pela composição literária de Itamar Vieira Junior, competente e posicionado num lugar de fala que lhe permite tais inferências, munido da alteridade, para deslindar sobre o feminino, longe de ser um “bacharel de escrivaninha”.

Ademais, Torto Arado é tecido por meio de um ritmo que nos faz lembrar da oralidade. A temática urbana, muito comum na literatura contemporânea, dá espaço para uma entrada aos confins do nosso país ainda muito tomado pela desigualdade social. A região da Chapada Diamantina é destacada com riqueza, cheia de diversidade, numa atmosfera que versa sobre agricultura, misticismo, instâncias de espiritualidade, conteúdos que tornam ainda mais forte esta história sobre pessoas que cultivam para os patrões e ficam com as sobras para sobreviver, que constroem suas casas e precisam reerguê-las diante das chuvas, pois o barro se dissipa diante do fenômeno meteorológico, numa travessia cíclica num cenário tomado por fortes índices de violência rural. Lançado em 2018, o romance em questão tornou-se um fenômeno literário incomum no esquema editorial brasileiro, uma pompa merecida. Com belíssima capa de Elisa V. Randow, ilustrada com imagem inspirada na famosa fotografia de Giovanni Marrozzini, Torto Arado é um dos melhores textos literários da atualidade, já posicionado num lugar de conforto para ser canonizado no futuro de nossa história literária.

Torto Arado (Brasil, 2018)
Autor: Itamar Vieira Junior
Editora: Todavia
Páginas: 262

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