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Crítica | Toy Story 4 (Sem Spoilers)

por Ritter Fan
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Se qualquer franquia cinematográfica precisar chegar ao quarto filme, então que ele seja assim, como Toy Story 4 e não como as inomináveis porcarias que vemos por aí e que deveriam ir diretamente para o mesmo lixo em que Garfinho, o novo e adorável personagem da série, quer tanto jogar-se. Em um futuro distante, se a Pixar não pisar na bola com as partes 5, 6 e 7 (ah, elas virão, podem ter certeza), estudiosos de Cinema serão obrigados a olhar para trás para dissecar como uma tetralogia – pelo momento – hollywoodiana conseguiu manter-se nesse nível de qualidade por tanto tempo. Certamente uma anomalia.

A resposta para esse mistério não é segredo, porém. Se pararmos para pensar, provavelmente concluiremos que a Pixar raramente erra e, quando erra, não erra muito feio e, diria mais, erra propositalmente como em Carros 2, fazendo um filme descaradamente para vender brinquedos que nivela a história por baixo, mas que ainda oferece muito mais do que grande parte de seus pares animados de outros grandes estúdios. Em Toy Story, a receita é o carinho, o respeito e o cuidado com os personagens que fizeram da empresa o que ela é hoje, a referência pela qual animações em CGI são julgadas. Com isso e mais o intervalo temporal entre cada novo episódio, permitindo que o famoso “toró de ideias” realmente crie histórias relevantes, o que a produtora entrega são pequenas joias que têm o que dizer, mesmo quando repisam temas e estruturas narrativas.

Toy Story 4 parte de um minúsculo “mistério” do filme anterior: porque afinal Betty (Bo Peep, no original, voz de Annie Potts) não apareceu no filme? Aprendemos, no flashback inicial, que ela havia sido vendida e que Woody (Tom Hanks), mesmo tendo oportunidade de ir com ela, fica com seu amado Andy. Esse pequenino rastilho narrativo é desenvolvido em uma nova e completa aventura que coloca os brinquedos, agora de propriedade da pequena Bonnie (Madeleine McGraw substituindo Emily Hahn), em uma road trip entre o primeiro dia da menina no maternal, ainda em fase de adaptação, e o efetivo começo do ano letivo.

Mas Bonnie cresceu e Woody perdeu seu lugar. Sem função, sem saber o que fazer, o cowboy de brinquedo acaba abraçando com missão de sua vida salvar Garfinho (Tony Hale, de Arrested Development), brinquedo feito de lixo no único dia de Bonnie no maternal e que funciona com símbolo de sua aceitação desse novo momento de sua tenra vida. Sem Garfinho, diz Andy, Bonnie não conseguirá “sobreviver” ao maternal. E o adorável brinquedo desengonçado, para piorar tudo, tem crise de identidade, sem saber o que é e por isso mesmo fazendo de tudo para voltar para onde veio: a lixeira. É uma inteligente forma de voltar aos momentos inciais da franquia, com Buzz Lightyear (Tim Allen) chegando no quarto de Andy certo de que está em um novo planeta e que ele é mesmo o que sua caixa diz que é e também uma maneira de olhar para o próprio Woody, totalmente perdido. É por essas e outras que o roteiro de Andrew Stanton (que co-escreveu os dois primeiros filmes e co-criou a história do terceiro) e Stephany Folsom (debutante em longas) funciona tão bem. Há circularidade dentro da história sendo contada e, também, dentro de toda a franquia, desde o filme original de 1995.

Mas há mais o que minerar do texto da fita. Grande parte da ação é passada no antiquário Segunda Chance, em frente ao parque de diversões para onde Bonnie e seus pais pais vão, já que, em sua milésima operação de salvamento de Garfinho, Woody vê o abajur que fazia parte do “jogo” de porcelana de Betty e suas ovelhas “mutantes” e parte para investigar. Essa ambientação não só cria a oportunidade para conversar sobre o tema da obra, que poderia talvez ser resumido à transformação, ao reaproveitamento, às mudanças por que todos nós precisamos passar para adaptar-nos à inclemência da vida, como também oferece uma abordagem metalinguística, auto-consciente do que a franquia Toy Story significa. Afinal, o primeiro capítulo da saga representou o primeiro exemplar longa-metragem em computação gráfica que realmente deu certo na indústria do audiovisual e ele, hoje em dia, pode ser considerado como uma relíquia, como uma valiosa ou querida peça antiga que merece veneração, mas que, mais do que isso, serviu como o primeiro degrau da escada evolucionária das animações do gênero. O mesmo pode ser dito de diversos objetos que vemos nas prateleiras do fascinante e labiríntico antiquário, como máquinas de escrever, caixas de música e, sim, brinquedos.

É ali, também, que a vilanesca boneca Gabby Gabby (Christina Hendricks, de Mad Men) e seus capangas na forma de assustadores bonecos de ventríloquo são introduzidos, gerando um conflito crível e terno, ainda que com resolução conveniente demais, retirando o peso de toda a construção desses personagens. No entanto, é interessante como a ambientação no antiquário “fecha” o filme de maneira eficiente, evitando que ele fique somente no “mundo aberto” e altamente limitativo para o que os brinquedos podem fazer sem tornar tudo muito forçado e fora da lógica estabelecida pela série.

Mas isso não quer dizer que o espaço exterior seja esquecido, já que ele tem uma representante ilustre, a própria Betty em uma inversão sensacional de papeis que reverbera bastante no ambiente atual de afirmação feminina, mas sem parecer forçado ou propagandístico. A meiga pastora de porcelana, criada originalmente como o arquétipo da dama em perigo e do interesse romântico do herói, não existe mais. Em seu lugar, temos uma destemida aventureira que está perfeitamente adaptada nesse mundão inóspito que habita, com direito a uma sidekick minúscula (Isa Risadinha, com voz de Ally Maki) que pilota um carro de controle remoto disfarçado de gambá (faz sentido!) e toda uma rede de conhecidos e até mesmo um daqueles “bares” do submundo onde só se entra com uma senha.

Essa reinvenção de Betty não só pega o espectador de surpresa, como decorre muito bem da história apresentada, além de ser outro elemento que se agarra fortemente à temática principal. A ex-pastora, agora aventureira, é, para quem a vê de fora, um “brinquedo perdido” como tantos outros que são deixados por crianças nos mais diversos lugares. Ela é tudo aquilo que Woody (e seus amigos) mais teme e que ele faz de tudo para evitar. Seu senso de lealdade para seus donos está enraizado profundamente na arquitetura da franquia e o quarto capítulo desafia justamente isso ao perguntar quem é que está perdido de verdade, ele ou Betty. A transformação que mencionei mais acima é algo que não vem fácil para Woody, mas Betty a abraçou e a condução da ação por Josh Cooley (que confiança da Pixar em entregar essa responsabilidade a ele, considerando que, na cadeira de diretor, ele só havia feito dois curtas) inverte a lógica que esperamos e quase coloca Woody no banco de reserva, abrindo espaço para que a (não mais tão) delicada Betty brilhe.

Nesse processo, a ex-dama em perigo traz para os holofotes o Evel Knievel da série na forma do hilário Duke Caboom (Keanu Reeves, que parece estar em todos os lugares) e, por seu turno, Buzz Lightyear traz a dupla “costurada” de bichos de pelúcia Patinho e Coelhinho, vivida respectivamente por Keegan-Michael Key e Jordan Peele, pessoalmente meus personagens novos favoritos em razão de seus planos de extrema violência inseridos hilariamente no roteiro. Isso garante que a boa e velha estrutura do “resgate do amiguinho” ganhe boas sequências de ação que, porém, estranhamente, não são lá terrivelmente originais ou emocionantes, dependendo demais, novamente de conveniência narrativas, muitas vezes colocando até mesmo Buzz como a encarnação delas já que ele, escanteado pelo roteiro, só aparece quando tem uma função bem específica para cumprir.

Mas é lógico que eu não poderia encerrar a crítica sem falar novamente de Garfinho. Além de representar a essência do filme, com sua crise de identidade entre ser brinquedo e ser lixo, entre ser o achado e o perdido, o trabalho de voz de Tony Hale é estupendo, daqueles que podem desde já figurar no panteão dos dubladores pela sua expressividade e evolução ao longo das sequências. E a animação do personagem é outro aspecto que precisa ser laureado dada as limitações que um brinquedo feito de utensílio de cozinha, arame e palito de sorvete representa para a técnica. E isso sem contar que Garfinho é exatamente o que uma criança pequena poderia criar em sua oficina da imaginação, provando que a sintonia da produção com os pequenos continua forte.

No quesito computação gráfica, não há muito mais o que falar a não ser deixar claro que todo os elogios hiperbólicos e superlativos possíveis são muito merecidos para variar. É chocante ver os passos evolutivos que a Pixar consegue dar a cada novo longa, bastando notar como em Toy Story 4 a água da chuva, das sequências iniciais, é realista ao ponto de parecer um filme live-action, não uma animação. E o mesmo vale para a textura dos rostos dos humanos, cada vez mais expressivos e fluidos, além do cuidado para que cada brinquedo também tenha sua própria textura e um conjunto harmônico de movimentos que condizem com suas características.

Toy Story 4 é mais um triunfo da Pixar e a prova cabal de que fazer continuações não precisa ser apenas o apertar de um botão para gerar mais do mesmo para um público que absorverá o conteúdo de qualquer jeito. Se é para o infinito e além que Toy Story caminha, então que venham mais capítulos assim.

Obs: Assisti ao filme com as vozes originais e sem 3D (ou seja, o melhor possível para mim), pelo que não posso tecer comentários sobre a dublagem brasileira e a estereoscopia.

Toy Story 4 (Idem, EUA – 2019)
Direção: Josh Cooley
Roteiro: Andrew Stanton, Stephany Folsom
Elenco: Tom Hanks, Tim Allen, Annie Potts, Tony Hale, Keegan-Michael Key, Madeleine McGraw, Christina Hendricks, Jordan Peele, Keanu Reeves, Ally Maki, Jay Hernandez, Lori Alan, Joan Cusack, Bonnie Hunt, Kristen Schaal, Emily Davis, Wallace Shawn, John Ratzenberger, Blake Clark, June Squibb, Carl Weathers
Duração: 100 min.

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