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Crítica | Trabalho da vida: Um Livro de Memórias, de David Milch

Uma vida de vícios. Um escritor genial.

por Ritter Fan
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Eu estava jogando. Um menino ocupado. Eu não estava pensando em escrever assim para a minha vida. Eu estava improvisando. Quando fui trabalhar pela primeira vez em Hill Street, não apenas carregava cada centavo que ganhava, mas carregava em dólares de prata em uma bolsa atlética. Eu voava para Las Vegas muitas noites, apostava os dólares de prata, e, depois, eu andava o dia todo com o dinheiro. Ninguém nunca perguntou sobre o tilintar.
– Milch, David (tradução do crítico)

David Milch começou sua carreira no audiovisual como roteirista de Hill Street Blues, uma das séries mais importantes da década de 80, e que abriria o caminho para a Era de Ouro que vivemos hoje em dia. Seu primeiro roteiro foi o do episódio 3X01 da série, Trial by Fury, que lhe valeu o Emmy de Melhor Roteiro de Série Dramática e marcaria positivamente sua carreira desde a largada, algo que ele até hoje agradece ao saudoso Steven Bochco, criador da série, pela chance. Mas, claro, o escritor é mais conhecido por criar Nova Iorque contra o Crime (NYPD Blue), outra obra que testou os limites do que a televisão aberta americana poderia oferecer, contribuindo para o futuro da TV e a estupenda Deadwood, criminosamente cancelada antes de seu fim pela HBO. Life’s Work – ou Trabalho da Vida em minha tradução literal, já que não houve publicação por aqui na data da presente crítica – é seu livro de memórias, sendo “memórias” uma palavra particularmente importante para a obra.

Afinal, algum tempo antes de ser chamado de volta pela HBO para terminar Deadwood com um longa-metragem que acabaria sendo lançado em 2019, Milch, então com 73 ou 74 anos, foi diagnosticado com demência, mais especificamente o temido Mal de Alzheimer. Seu livro de memórias, portanto, é sua despedida em vida, sua forma de resumir mais de sete décadas de laços familiares, de vícios e de trabalho profissional e de, no processo, reconhecer suas muitas falhas, seus muitos fracassos e agradecer àqueles que o ajudaram a ser quem ele acabou sendo, talvez especialmente sua esposa Rita, com quem casou há 45 anos e com quem permanece casado até hoje e a quem ele sem dúvida deve grande parte do que conseguiu.

Diferente da autobiografia de Mel Brooks, que escolheu uma abordagem mais direta e fundamentalmente cronológica com base em suas obra, ou do livro de Brian Cox que defenestra a cronologia em prol de uma discussão sobre a arte em si, ou mesmo a dura autoanálise publicada postumamente de Michael K. Williams, isso só para citar três autobiografias recentes de celebridades, David Milch usa suas criações para compartilhar suas filosofias, suas ideias sobre escrever para a TV e o que isso representa para ele e pode representar para os outros. Ao mesmo tempo, há uma inevitável melancolia que perpassa toda a obra, considerando que ela foi escrita com seu Alzheimer já em andamento e em grande parte com ele vivendo em um lar para seu tratamento terapêutico e, por diversos meses, afastado de sua família em razão da pandemia. Isso dá um tom personalíssimo à obra e empresta uma sobriedade assustadora à leitura.

A doença de Milch talvez seja responsável pelos altos e baixos narrativos do livro. Mas calma, pois não uso a expressão com a conotação semi-negativa que ela inevitavelmente tem. Apenas quero dizer que, dependendo do período de sua vida e do assunto que Milch aborda, a escrita difere. Por exemplo, quando ele fala de épocas mais remotas, sobre seu avô e principalmente seu pai, sua mãe e seu irmão, o que acontece com mais proeminência no início, o estilo aproxima-se mais de narrativa em fluxo de consciência, com parágrafos longos e alguns devaneios que somente aos poucos vão ganhando forma e relevância. Depois, quando ele fala de Hill Street Blue, NYPD Blue e Deadwood, a escrita ganha uma forma mais detalhada, mais “científica” por assim dizer, com suas obras posteriores – normalmente fracassos de uma maneira ou de outra – retornando um pouco à abordagem mais acelerada.

No entanto, seja de uma maneira ou de outra – e sei que estarei chovendo no molhado para quem conhece o trabalho de Milch – o autor escreve maravilhosamente bem. Mesmo considerando que seu texto passou por revisões profundas de suas esposa e de seu editor em razão do Alzheimer, é perfeitamente possível constatar que o livro é fundamentalmente dele, com a sua forma mais complexa e rica de escrever que, sem muito medo de errar, aproxima-se – ou talvez alcance – o genial. Melhor ainda, Milch não tem nenhum pudor em descortinar sua tendência à autodestruição, com seus vícios em drogas, em jogos, sua tendência a ser perdulário com o dinheiro mesmo que isso afete sua família ganhando um grande destaque ao longo da narrativa, algo que começa com seu pai, alcoólatra, levando-o ao caminho das apostas em corrida de cavalos quando ele tinha apenas oito anos.

Chega a ser angustiante perceber a facilidade com que Milch – que nunca foi pobre, vale dizer – descreve as maiores barbaridades quando jovem, passando dias, semanas, meses, talvez anos debaixo de uma neblina mental causada pelo estupor das mais variadas drogas. Seus tratamentos, recaídas e novos tratamentos somados ao diagnóstico de bipolaridade são costurados, com ele já adulto, em sua vida pessoal e refletidos em sua vida profissional que, por sua vez, reflete de volta para ele suas consequências. É muito interessante como o texto cria uma fusão quase que perfeita entre fatos concretos e abordagens pessoais sobre religião, uso de drogas, vício em jogo e assim por diante, assim como é fascinante ler Milch explicando como uma série sobre a vida de São Paulo Apóstolo, que ele estudou profundamente ao longo de pelo menos um ano, acabou tornando-se Deadwood quando ele chegou ao denominador comum entre as duas histórias, algo que só uma mente brilhante poderia chegar: o quanto a humanidade é capaz de reunir-se ao redor de um símbolo, a cruz no caso do apóstolo, o ouro no caso dos Black Hills.

David Milch faz sua confissão e seu testamento em Trabalho da Vida. Um homem que gradativamente está perdendo aquilo que faz dele quem ele é nos brinda com suas últimas e honestas palavras sobre si mesmo na esperança de exortar os leitores a manterem viva a chama da criatividade e dos esforços para criar entretenimento, e a darem chances a pessoas criativas, mesmo que o resultado final, bem lá para a frente, possa ser o retorno à tábula rasa de onde viemos.

Trabalho da Vida: Um Livro de Memórias (Life’s Work: A Memoir – EUA, 2022)
Autor: David Milch
Editora original:
Data original de publicação: 13 de setembro de 2022
Páginas: 304

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