Lançado em 2000, Traffic: Ninguém Sai Limpo é um drama dirigido por Steven Soderbergh e escrito por Stephen Gaghan, que se debruça sobre o complexo universo do narcotráfico por meio de múltiplas perspectivas. Com 147 minutos de duração, o filme se desdobra em três narrativas interligadas: um ministro da Suprema Corte que descobre a dependência de sua filha, uma esposa que assume o comando de um cartel após a prisão do marido, e os conflitos entre um policial e chefes do tráfico na fronteira entre Texas e México. A obra é uma adaptação da série Traffik, do Channel 4, e utiliza diferentes paletas de cores, como azul e amarelo torrado, para simbolizar as realidades distintas dos personagens, todos eles, mesmo sem se conhecerem, refletindo as múltiplas facetas do tráfico de drogas. Ao longo da densa trama, Soderbergh apresenta uma visão sombria e cínica da guerra contra as drogas, sugerindo que é uma batalha perdida. A narrativa ilustra como a realidade doentia e corrupta do tráfico afeta não apenas os usuários, mas também a política e a estrutura familiar, expondo a fragilidade das pessoas envolvidas em cada nível da cadeia. Enquanto as histórias convergem para um desfecho comum, o filme provoca uma reflexão profunda sobre as consequências devastadoras do narcotráfico na sociedade, questionando a eficácia das estratégias de combate às drogas e revelando a complexidade moral que permeia o problema.
Com uma montagem ousada de Stephen Mirrione, direção de fotografia eficiente, assinada pelo próprio cineasta e condução musical de Cliff Martinez, Traffic: Ninguém Sai Limpo é uma produção astuta em sua estética, apesar de ser ligeiramente cansativa por conta de sua duração excessiva demais. Com personagens esféricos e diálogos dinâmicos, o filme explora a complexa rede do tráfico de drogas, evidenciando como ocorre a produção, distribuição e consumo de substâncias ilícitas, além dos impactos sociais e políticos. Em sua estrutura dramática, a trama nos apresenta por meio de um tom didático, como a realidade dos viciados em afeta as famílias, mostrando a realidade de pessoas que lutam contra o vício e como isso impacta seus entes queridos, utilizando uma estrutura narrativa não linear, apresentando diferentes histórias interconectadas, que incluem policiais, traficantes, usuários e políticos. Uma das tramas aborda a corrupção dentro das forças policiais, mostrando como a corrupção pode afetar a luta contra o tráfico de drogas e a confiança da comunidade, numa contundente critica a abordagem da política de drogas nos Estados Unidos, incluindo a guerra às drogas e suas consequências, questionando a eficácia e a moralidade dessa abordagem.
Como apresentado, o roteiro de Stephen Gaghan, apresenta três narrativas interligadas que exploram o complexo universo do tráfico de drogas. A primeira história segue um policial mexicano correto que, mesmo diante de uma violenta guerra entre cartéis, se esforça para manter sua integridade e cumprir a lei. A segunda narrativa foca em um magistrado americano que assume a liderança de uma cruzada contra as drogas, enquanto enfrenta o dilema pessoal de ver sua filha sucumbir ao vício. Por fim, a terceira trama acompanha uma socialite que, ao descobrir que seu marido é um traficante, se vê obrigada a gerir os negócios da família para manter seu status e segurança. Juntas, essas histórias ilustram as diversas facetas e os impactos do tráfico de drogas na sociedade. O filme se destaca pela habilidade em manter o espectador engajado nas três histórias, evitando confusões ou monotonia, graças à edição impecável de Stephen Mirrione. A direção de Steven Soderbergh também brilha ao extrair performances memoráveis do elenco, ressaltando a habilidade do diretor em trabalhar com atores. Entre os talentosos, Benicio Del Toro se destaca, interpretando um policial multifacetado que foge dos estereótipos clássicos de herói, apresentando uma complexidade emocional e ética que enriquece a narrativa.
Ademais, ao longo de seu desenvolvimento, o texto de Gaghan também enfatiza as realidades sociais e econômicas que alimentam o tráfico de drogas, analisando como a pobreza, a falta de oportunidades, dentre outras celeumas, podem influenciar o envolvimento com o tráfico. O filme levanta questões sobre responsabilidade e culpa, questionando quem são as verdadeiras vítimas e quem é o responsável pelo ciclo de violência e vício, num enredo que inclui a luta por recuperação e reabilitação, destacando os desafios enfrentados por usuários para se livrarem do vício e reconquistarem suas vidas. Em seu discurso crítico, Traffic: Ninguém Sai Limpo explora a dinâmica nas relações entre os personagens, revelando como a dependência e o tráfico afetam amizades e os laços familiares, além de tocar na forma como diferentes culturas e sociedades lidam com as drogas, nos mostrando a complexa rede de interconexões entre consumidores, traficantes e as estruturas sociais em diferentes países. Em linhas gerais, é uma produção que reflete a guerra contra o tráfico de drogas como um tema que gera intensos debates em diversas esferas sociais, políticas e econômicas. Este fenômeno é frequentemente caracterizado por uma abordagem sem esperança e uma complexidade de resolução que, a partir de uma análise crítica, pode ser compreendida em múltiplas dimensões. O filme, por sinal, é pessimista em seu tom.
Em primeiro lugar, a natureza estruturada e adaptável do tráfico de drogas contribui para um cenário pessimista. As organizações criminosas que controlam o tráfico são altamente estruturadas e possuem uma capacidade notável de se adaptar às circunstâncias. Mesmo diante de intensas operações policiais, essas redes muitas vezes se reorganizam rapidamente, mudando rotas e métodos de operação. Esse dinamismo faz com que os esforços de combate ao tráfico se assemelhem a um jogo de gato e rato, em que os traficantes parecem estar sempre um passo à frente. Assim, as políticas adotadas frequentemente parecem ineficazes, alimentando um sentimento de desesperança. Outro ponto que acentua o pessimismo é o impacto social e econômico das políticas de combate às drogas. Em muitos contextos, especialmente nas comunidades mais vulneráveis, a abordagem punitiva da guerra às drogas gera consequências desastrosas. A criminalização do uso de substâncias, associada a altas taxas de encarceramento, resulta em cicatrizes duradouras nas comunidades atingidas, perpetuando um ciclo de pobreza e marginalização. A falta de investimentos em programas de prevenção e tratamento para o uso de drogas pode ser vista como uma falha grave, uma vez que esses enfoques poderiam oferecer soluções mais efetivas e humanizadas para o problema das drogas.
Adicionalmente, as políticas públicas que sustentam a guerra contra o tráfico tendem a desconsiderar as causas sociais que impulsionam o consumo de drogas e a atuação do tráfico. Fatores como a pobreza, a falta de oportunidades educacionais e a desintegração familiar são barreiras que dificultam qualquer progresso significativo. Em muitos casos, o tráfico de drogas se torna a única alternativa de sobrevivência econômica para indivíduos em situação de vulnerabilidade. Desconsiderar esses aspectos sociais nas políticas de combate às drogas resulta em soluções superficiais que não atacam a raiz do problema. Do ponto de vista internacional, a dinâmica do tráfico de drogas é igualmente complexa. Traffic: Ninguém Sai Limpo, há mais de duas décadas, nos mostrou isso por meio de sua narrativa politizada e ganhadora de numerosos prêmios da indústria cinematográfica. O fenômeno do tráfico transcende fronteiras, e a colaboração entre países é muitas vezes limitada por questões políticas, econômicas e sociais. Em regiões como a América Latina, por exemplo, os países produtores de drogas enfrentam pressões de nações consumidoras, e a luta contra o tráfico é frequentemente influenciada por interesses geopolíticos que dificultam uma abordagem coesa e eficaz. Trazendo para o contemporâneo, uma releitura seria pertinente, pois a comunicação digital e a atual dinâmica das criptomoedas oferecem novas ferramentas para os traficantes operarem de forma mais discreta e segura. Isso implica que a guerra contra o tráfico de drogas necessitará de inovações constantes e de uma reavaliação da maneira como tais estratégias são implementadas.
Filme pessimista, realidade idem, atualização do debate da mesma maneira. Uma sina da humanidade.
Traffic: Ninguém Sai Limpo (Traffic) Estados Unidos, 2000.
Direção: Steven Soderbergh
Roteiro: Stephen Gaghan
Elenco: Michael Douglas, Benicio Del Toro, Catherine Zeta-Jones, Don Cheadle, Luis Guzmán, Dennis Quaid, Erika Christensen, Topher Grace, Amy Irving, Steven Bauer, Jacob Vargas, Tomas Milian, Albert Finney, Miguel Ferrer
Duração: 147 min.