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Crítica | Trama Fantasma

por Luiz Santiago
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O chá é retirado, mas a interrupção fica aqui, comigo“. Assim define Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) a chegada de Alma (Vicky Krieps) ao seu ateliê, trazendo um bebida sem que fosse solicitada. Reynolds é um homem metódico, imensamente focado e consumido pelo trabalho. As pessoas à sua volta são meios para que os belos vestidos da Casa Woodcock continuem impressionando a nata da sociedade britânica dos anos 1950. Livremente inspirado na vida do estilista espanhol Cristóbal Balenciaga, Trama Fantasma (2017) é o resultado final de um fio tóxico de beleza e delicadeza, costurado a um homem orgulhoso, cheio de amor, ódio e carente de companheirismo, mesmo que não queira ou se dê conta disso.

Reynolds Woodcock, protagonista da história, teve seu nome vindo de uma piada de Daniel Day-Lewis para o roteirista e diretor Paul Thomas Anderson, que achou o sobrenome mais do que adequado ao personagem, cujo comportamento em constante mudança é capaz de deixar a todos tensos, criando, desde muito cedo no filme, uma atmosfera de medo, com todos agindo com extremo cuidado para não enraivecer ou interromper o artista em seu trabalho. Valendo-se da música de Jonny Greenwood como trampolim para um Universo de respiração suspensa e sutilizas, Paul Thomas Anderson dirige um grande desfile de amadurecimento e transformações internas de personagens à medida que esses mesmos indivíduos são celebrados por fazem outras pessoas mudarem o exterior. O mundo da moda é visto aqui por um ângulo bastante íntimo, como se cada vestido criado por Reynolds fosse uma confissão compartilhada e diante da qual todo respeito e admiração é pouco.

Entre pequenos trechos de Berlioz, Schubert, Debussy e melodias plácidas ao piano compostas por Greenwood, entramos compassadamente neste espaço onde cada personagem é inicialmente definido por sua relação com alguma parte da confecção, seja como modelo, como criador, como aquele que observa e zela para que o criador esteja em seu melhor espírito, ou aqueles que são vestidos por este criador. Não apenas a posição social mas também o tipo de pessoa que teremos na tela são previamente definidos pela ligação com os produtos da Casa Woodcock. O formalismo de PTA torna esse processo ainda mais intenso, pois em cada estágio o vemos utilizar uma técnica diferente de aproximação ou afastamento de personagem, indicando mudanças emocionais. Através do ritmo da montagem para algumas cenas, do tipo de plano majoritariamente utilizado, do desenho de luz ou filtro de cor predominante quando alguém está em tela, o diretor afunilou cada bloco individual para um único espaço, onde os problemas de relacionamento são milimetricamente capturados pela câmera e afetam a todos ao mesmo tempo. Então o texto dá as cartas do suspense.

Após o encontro de Reynolds e Alma, Cyril, a personagem de Lesley Manville, ganha ainda mais força. Ela fala pouco, mas sua posição diante do irmão e da esposa é colocada em um patamar de dúvida, onde nos angustiamos por não saber qual é a sua intenção e qual jogo está sendo jogado. Vicky Krieps dá uma dimensão de fortaleza e desfaçatez impressionantes para sua personagem e a leitura de intuitos vai ficando ainda mais difícil, pois tentamos associar alguns de seus atos e contrariedades à docilidade de seu rosto, ao tom de voz, aos sorrisos e não conseguimos chegar a uma conclusão. O roteiro vai paulatinamente criando surpresas para cada um, a ponto de nos fazer repensar todo o comportamento de Cyril a partir de uma fala sobre Alma. Ou até mesmo buscar entender o quão Reynolds é perdido e massacrado por um Complexo de Édipo para chegar a um estágio da vida em que decisões importantes são apenas uma pausa em seu orgulho e espaço para a entrega de um novo vestido. Esse momento, a longo prazo, tende a sumir, colocando o personagem novamente em rota de fuga.

Day-Lewis, em mais uma soberba interpretação, não deixa escapar nenhum momento, permitindo que seu personagem sofra, entenda perfeitamente o que está acontecendo e conclua que sua salvação só pode ser conseguida através do caminho mais difícil. Não há exagero, não há uma única alteração de voz fora do lugar ou cena que não era para estar lá. Com o tempo, reparamos nas influências de filmes como Rebecca, A Mulher InesquecívelA História de uma Mulher. Cada uma das mulheres em torno de Reynolds parecem, à primeira vista, estar ali para agradá-lo, para fazê-lo se sentir bem. Então o roteiro toma o tempo necessário para nos mostrar que algumas coisas são bem mais complexas do que parecem à primeira vista. Reparem como Cyril se coloca diferente em cada fase do filme, mesmo em seus olhares e silêncios. Como os “muitos movimentos no café da manhã” por parte de Alma são alterados dependendo do momento e de sua intenção final. E de como Reynolds parece precisar disso, dando corda a um cenário de A Megera Domada sem mesmo notar que isto está acontecendo.

Grandeza profissional e amor são recriados em Trama Fantasma a partir de silêncios, provocações e produção de beleza para ser exibida e admirada. Não há personagem que não entenda o valor da arte que está em jogo. Os maneirismos, flertes e queixas transcendem o que querem dizer, são apenas estágios momentâneos, parte de um ciclo que faz muito mal aos envolvidos, e talvez por isso mesmo, seja a única coisa que lhes faça muito bem. Fios de intenções invisíveis se cruzam para tecer uma trama fantasma de comportamentos amargos, demonstrações inesperadas de amor, cumplicidade, arte e felicidade. Daniel Day-Lewis se aposenta da carreira de ator em um clímax. E Paul Thomas Anderson parece ter construído mais uma camada de maturidade em sua carreira como cineasta.

Trama Fantasma (Phantom Thread) — EUA, 2017
Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson
Elenco: Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps, Lesley Manville, Sue Clark, Joan Brown, Harriet Leitch, Dinah Nicholson, Julie Duck, Maryanne Frost, Elli Banks, Amy Cunningham, Amber Brabant, Geneva Corlett, Juliet Glaves, Camilla Rutherford
Duração: 130 min.

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