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Crítica | Três Anúncios Para um Crime

por Gabriel Carvalho
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“Que lei diz o que você pode ou não colocar em um outdoor?”

Três Anúncios Para um Crime é um longa-metragem carregado de substância dramática. Em um primeiro momento, é notável as similaridades temáticas da obra com o ótimo Terra Selvagem, do mesmo ano. Nas divergências, porém, ambos produtos se sobressaem. A distinção fundamental, comparando-se os filmes, está na maneira como se é abordada uma sociedade hediondamente violenta. Nos dois casos, uma garota é violentada e morta, mas, enquanto um filme lida com a vingança, o outro lida com a impunidade, com o sentimento de que muitas coisas na vida terminarão abruptamente, não terão nenhum final cinematográfico ou justiça poética e seremos obrigados a nos contentar com o vago consequente. Mildred Hayes (Frances McDormand), contudo, não se conforma com a ausência de respostas e, meses após sua filha ser estuprada e assassinada, decide alugar três outdoors em uma estrada. Sua intenção é chamar a atenção das autoridades, escancarar seu inconformismo, colocar o caso em pauta novamente. Caso a tentativa seja um fracasso, ao menos, no final, não lhe caberá dizer que não deixou de tentar encontrar justiça para a sua filha, para vítimas como ela. No intrínseco dessa atitude, o que Mildred quer encontrar, acima de tudo, é uma paz para si mesma – o cervo solene. O caminho ideal para que uma mãe tenha seu sofrimento amenizado é esse? Martin McDonagh nos convida a embarcar numa jornada por uma cidade pequena, cheia de vida e hipocrisia, marcada por coadjuvantes que dão as caras para participar de um dos estudos de personagens mais fenomenais dos últimos anos.

Frances McDormand, apesar de todos os tipos da cidade possuírem seus momentos, é a comandante desta peça cinematográfica, norteando a condução da relação entre espectador e obra. A artista prova ser a chave para o funcionamento do filme. Sua dor é compreendida pelos habitantes da cidade, mas sua atitude de colocar os anúncios não, considerada radical, devido o apontamento ao nome do Chefe Willoughby (Woody Harrelson), uma personalidade amada por todos e que passa por uma fase complicada. Acompanhamos, pela obra, ameaças de indivíduos, ataques à propriedade privada e outros símbolos da insatisfação do povo. Woody Harrelson, nesse pedaço, encontra espaço para mostrar que sua presença no filme não se qualifica como um clichê de bom moço, mas uma performance condizente com a natureza temática já apontada no texto – sobre o que se é inexplicável, sobre quando as coisas são amargamente finitas e se deve lidar com elas, ora passivamente ao acaso, ora como donos de seu próprio destino. Martin McDonagh nos coloca no meio de dilemas fortes. Chegará a hora de Mildred desistir dos seus três anúncios? Um roteiro que se esforça em dar camadas à vida dentro da casa de Mildred; camadas à dor de uma mãe e ex-esposa. Contudo, se, por um lado, John Hawkes dá pulso à “rivalidade” e toxicidade de seu personagem em relação à Mildred, Lucas Hedges definitivamente não encontrou a pegada certa para sua interpretação, devendo à maestria de McDormand. As coisas caminham, mesmo com seus percalços, para que essa seja uma história rica de conteúdo, memorável.

Martin McDonagh, ao apresentar provocações em dose, trafegando tanto pelo absurdo situacional quanto pela trivialidade ocasional, acaba por nos fazer lembrar dos Irmãos Coen, embora o cineasta tenha a sua assinatura e seu estilo próprio. O mais interessante, visto que, em muitos casos, o cômico se entrelaça com o dramático, é a não-anulação de qualquer uma das vertentes. Ambas se complementam, reforçando a piada, tornando-a mais densa e significativa, além de dar pungência às problemáticas. McDonagh nos faz rir do surreal, mas joga as cartas necessárias para que nada seja gratuito narrativamente. Um plano-sequência na metade da projeção, por exemplo, sensacionalmente executado, pode arrancar as mais fortes gargalhadas do público. Os risos, porém, não tiram, em momento algum, o peso da cena e o significado que ela tem para os personagens apresentados. A intenção da construção narrativa é fortalecida, mostrando nuances não apresentadas anteriormente, como o tamanho da fúria de certo personagem diante de um determinado acontecimento. O tom só não pode ser qualificado como perfeito porque falha em uma única sequência, igualmente permeada por um senso musical lúdico, mas distanciada desta citada, sem eficácia. O conteúdo substancial do momento não é absorvido integralmente pelo espectador, embora o elemento de virada permaneça, podendo ser revisitado sobre óticas futuras para comprovar a funcionalidade dos arcos pessoais. O texto, em um outro plano de abordagem, transborda, nesse mix tragicômico, diálogos afiadíssimos.

Quem é Jason Dixon (Sam Rockwell), um policial racista e extremamente estúpido, movido por impulsos questionáveis? Um desgosto por ele é simples de ser alcançado. O que Três Anúncios Para um Crime promove, incrivelmente, é um trabalho de humanização sobre um homem indubitavelmente condenável. O racismo, afinal, é algo injustificável. Como todo ser humano é complexo, porém, essa é uma das muitas características que atendem o personagem. A sua personalidade imbecil não é a sua totalidade. Não necessariamente o racismo precisa ser justificado. Muitos racistas são racistas por serem simplesmente racistas. O entendimento em relação ao trabalho de McDonagh, em um filme que não se obriga a dar resoluções convencionais ao reprovável, é vasto. Apesar de termos um background envolvendo o personagem, seguindo uma fórmula básica, o restante do que se tem sobre Dixon, também sobre o arco que ele protagoniza durante o filme, é baseado na sua vida presente, acerca do seu relacionamento com sua mãe, interpretada por Sandy Martin, maravilhosa, e do seu relacionamento com o próprio chefe Willoughby – as consequências são parte de uma estrutura superior ao preto no branco. Os pesares do fracasso e irresponsabilidade, do senso de inutilidade, são sentidos. As sugestões retratam o vínculo existente entre o policial e o personagem de Harrelson – algo que vai se apresentando em momentos pequenos, comuns, como um choro e um abraço, todos funcionais dentro do esquema montado pelo diretor e roteirista.

A fugacidade em enxergar minúcias, essenciais no funcionamento do conjunto, é impensável. Martin McDonagh, a exemplo, atribui um papel interessante até para Peter Dinklage – a história, de repente, o torna importante. Mildred e seu ex-marido, consequentemente, possuem situações que tornam-se mais agudas justamente pela presença do personagem, pertencendo, assim como a protagonista, a um grupo diminuído pela sociedade. McDonagh, porém, não resiste em trabalhar o acaso pelo acaso em sua forma mais crua, apresentando um certo personagem antecipadamente, sendo a conclusão da trama uma grande coincidência, quando deveria ser um fechamento aleatório. Três Anúncios Para um Crime, em suma, pensa a dor como podendo ser tratada de vários modos. Assim como a vida de uma garota terminou abruptamente, sem nem ter chance de começar efetivamente, muitas coisas no mundo também permanecem em aberto. O cineasta, aliado a excelente trilha sonora, cria uma história pungente cheia de personagens fortes, que não existem para sustentar um vazio, mas para preencher as lacunas que ações mundanas, fomentadas pelo nada, movem na vida de muitas pessoas. Três Anúncios Para um Crime aborda seres sedimentados e seres que sedimentam. Com o tempo, porém, há espaço para que mudemos as rotas de nossas perspectivas e olhemos os frutos da sedimentação com outros olhos, às vezes deixando-os de lado e embarcando na redenção, outras vezes apenas mudando o alvo de nosso pagamento de contas.

Três Anúncios para um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri) – EUA/Reino Unido, 2017
Direção:
 Martin McDonagh
Roteiro: Martin McDonagh
Elenco: Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell, John Hawkes, Peter Dinklage, Abbie Cornish, Caleb Landry Jones, Kerry Condon, Amanda Warren, Darrel Britt-Gibson, Lucas Hedges, Samara Weaving, Sandy Martin
Duração: 115 min.

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