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Crítica | Tristana, Uma Paixão Mórbida

por Ritter Fan
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Tristana, segunda colaboração de Luis Buñuel com Catherine Deneuve (a primeira foi no sensacional A Bela da Tarde), é um filme difícil de assistir. Filmado em locação em Toledo, Espanha, o longa nos apresenta a personagens estranhos, doentios, em uma ambientação antiga, decadente, propositalmente caindo aos pedaços. E, mesmo que, lá pela metade da projeção, consigamos notar um vislumbre de luz no fim do túnel, a grande verdade é que a luz é enganosa, maldosa mesmo, pois Buñuel nos faz mergulhar mais profundamente ainda no macabro logo em seguida.

Considerada a mais “espanhola” de suas obras, Tristana, uma co-produção entre Espanha, França e Itália, marcou a volta do diretor catalão para seu país natal, em plena 2ª Fase Francesa de sua carreira. Conseguindo um semi-perdão da Igreja Católica e um desconfortável tapinha nas costas do regime franquista então vigente, Buñuel trabalhou com dificuldades um roteiro constantemente escrutinado pela maldita censura.

E o resultado é puro Buñuel, mesmo com todos os obstáculos. Ele distribui estocadas firmes na aristocracia, no autoritarismo e sim, novamente, na Igreja Católica, o que indica que os censores ou não devem ter entendido nada, ou simplesmente, a essa altura do campeonato, não mais se importavam, já que Frederico Franco já estava perdendo poder. A história foca em Tristana (Deneuve), uma jovem órfã que é acolhida por Don Lope (Fernando Rey, ator com histórico de grande parceria com o diretor), um aristocrata comunista falido que vive de vender suas últimas possessões para não ter que trabalhar. Ele deixa muito claro que havia prometido à mãe da jovem que cuidaria dela como se fosse sua própria filha.

Não demora muito e Tristana de inocente passa a vítima, quando Don Lope avança sexualmente e passa a viver uma horrível vida dupla de pai e marido que ele mesmo se orgulha em afirmar para ela. Os únicos momentos de alívio para Tristana é quando ela sai clandestinamente para passear com a empregada Saturna (Lola Gaos) ou quando brinca com o filho surdo e mudo dela, Saturno (Jesús Fernández).

Com a passagem do tempo – que Buñuel faz com enorme sutileza – Tristana amadurece e começa a ganhar independência. Não demora e ela conhece o artista Horacio (Franco Nero) e os dois passam a ter um caso que culmina com eles indo viver juntos longe de Toledo por dois anos. Tristana só retorna para debaixo das asas de Don Lope quando fica doente e tem que amputar uma perna.

E, por incrível que pareça, todos os acontecimentos acima, por mais duros que possam parecer, apenas estabelecem e preparam o terceiro ato, que é a silenciosa vingança de Tristana. De jovem inocente, para vítima, para amante e, finalmente, para anjo vingador. Com uma maquiagem que realça seus olhos, ela literalmente transforma-se em um demônio e os papéis são finalmente invertidos.

Se antes odiávamos Don Lope por tudo que ele fez com Tristana, Buñuel vira o jogo e faz dele a “vítima” e, graças ao fenomenal trabalho de Fernando Rey, nós realmente nos compadecemos por ele. E, incrivelmente, passamos a odiar Tristana. Sem uma perna, sempre carrancuda e com roupas escuras, seu ódio por tudo que deu errado em sua vida recai sobre Don Lope (não sem razão, que fique claro) e Buñuel nos manipula de forma a temermos essa nova Tristana.

A capacidade de Buñuel de alterar vagarosamente sua narrativa ao mesmo tempo em que utiliza a religião, antes odiada pelo ateu Don Lope e, mais tarde, tolerada por ele, especialmente quando ele novamente enriquece e os padres querem gordas doações, é brilhante. Demoramos a entender exatamente o objetivo do diretor, especialmente quando ele nos dá uma vaga esperança de um final feliz, mas que nós sabemos que não virá.

Em toda sua carreira, Tristana talvez seja o filme mais atmosférico do diretor e provavelmente o que mais exige paciência do espectador. Não há pressa. Não há evoluções bruscas. A inversão de papeis – vítima em algoz e vice-versa – é uma das mais perfeitas do cinema e o espectador que souber apreciar esse difícil filme não sairá ileso da experiência.

  • Crítica originalmente publicada em 13 de janeiro de 2014. Revisada para republicação em 05/09/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.

Tristana, Uma Paixão Mórbida (Tristana, Espanha/Itália/França – 1970)
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Julio Alejandro, Luis Buñuel (baseado em romance de Benito Pérez Galdós)
Elenco: Catherine Deneuve, Fernando Rey, Franco Nero, Lola Gaos, Antonio Casas, Jesús Fernández, Vicente Soler, José Calvo
Duração: 95 min.

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