Afonso Henriques de Lima Barreto, que assinava somente como Lima Barreto, é um dos mais importantes autores brasileiros, mas também um dos mais historicamente subestimados, só ganhando o relevo que merecia postumamente, depois de falecer muito novo, aos 41 anos. Publicado em forma serializada no mesmo ano que O Homem que Sabia Javanês, Triste Fim de Policarpo Quaresma é uma sátira crítica da Primeira República (ou República Velha) que faz de seu protagonista uma figura quixotesca, que mantém seus ideais impraticáveis firmes, sem conseguir perceber o quanto é ingênuo e chocando-se com a reação de todos aqueles ao seu redor, com a função de comentar fundamentalmente o nacionalismo e patriotismo em suas principais matizes, a genuína, ainda que exagerada para causar o impacto necessário, e a utilitária, usada como instrumento de manobra principalmente por políticos para conduzir as massas e amealhar poder.
O major Policarpo Quaresma é um membro da elite do Rio de Janeiro que vive devorando livros e construindo mentalmente uma História do Brasil que coloca o Brasil em um pedestal de absoluta superioridade em relação a todos os demais países, defendendo sua produção cultural, sua vegetação e sua terra com unhas e dentes e até mesmo a mudança da língua oficial de portuguesa – naturalmente “estrangeira” – para o tupi e decidindo aprender a tocar violão, instrumento malvisto à época, como manifestação pura da música nacional. A ironia embutida nas obras estrangeiras sobre o Brasil que ele lê é fenomenal, assim como é a construção de um personagem com evidentes traços monomaníacos que eu poderia chamar de extravagantes, mas que beiram mesmo a boa e velha insanidade ou, no mínimo, a mais completa ilusão. No entanto, Quaresma não é um vilão. Muito longe disso, vale dizer. Os paralelos com o fidalgo Dom Quixote são inescapáveis em toda a maneira como ele abraça a vida, como ele enxerga as autoridades, a burocracia e como ele luta contra seus próprios moinhos. E, como no caso do personagem espanhol, o resultado é sempre trágico, como, aliás, Lima Barreto já deixa claro no título.
Seja na cidade do Rio na primeira parte, no interior do estado em um sítio que ele compra para se isolar ou durante a Revolta da Armada, de volta para a cidade, nada que Quaresma faz é visto com bons olhos por seus pares. Ele é uma figura fadada ao fracasso tanto por isolar-se em seus pensamentos bem específicos, como pelas forças externas que operam e conspiram contra ele, mesmo que de maneira inadvertida. Sua existência no romance tem a função de contraponto, quase como se o protagonista fosse unicamente um instrumento para Lima Barreto marcar seu ponto que é o de derrubar o falso patriota, aquela figura que chegou viva e bem até os dias de hoje, que faz questão de bater no peito e bradar essa sua qualidade para quem quiser ou não ouvir, mas que, sob essa camada rasa, esconde, na verdade, interesses muito pessoais, egoístas e mesquinhos. O nacionalismo exacerbado, como sabemos bem, é o verniz bonito para extremismo e radicalismo e Policarpo Quaresma é, como disse, esse espelho que revela a verdade por meio de seu próprio patriotismo que vem do coração e que, por mais impraticável e insano que possa ser, realmente é altruísta, visando o bem de um país.
É no exagero satírico de Lima Barreto na construção de Policarpo Quaresma que evidencia todo o restante, de Floriano Peixoto às autoridades menores, passando pela guerra como remédio primeiro e único para qualquer coisa. Mas é com o uso da língua portuguesa desprovida de floreios – em comparação com obras da mesma época, evidentemente – que o autor triunfa na sua versão de patriotismo literário, por assim dizer, trazendo sua obra para o português efetivamente falado e não apenas o imaginado, mas sem jamais deixar de evidenciar sua engenhosidade criativa. Ainda que não seja isso de forma absoluta, pois tudo é um processo, ler Triste Fim de Policarpo Quaresma parece uma experiência de ruptura linguística que se distancia de um passado formalista para algo diferente, mais pé no chão, próximo da população como um todo. Mais de 100 anos depois, com as diversas ondas de recrudescimento do patriotismo histérico como caminho e justificativa para a tomada de poder no Brasil e no mundo, o major Quaresma continua tão relevante quanto na época de sua discreta publicação original.
Obs: Há diversas edições do romance, mas a que li, da Editora Antofágica, para quem tiver interesse, não só é esteticamente muito bonita, com sua capa dura e ilustrações belíssimas, como contém valiosos textos de apoio e notas contextualizadoras.
Triste Fim de Policarpo Quaresma (Brasil, 1911)
Autoria: Lima Barreto
Editora original: folhetins do Jornal do Commercio (Diários Associados)
Data original de publicação: entre agosto e outubro de 1911
Páginas: 432 (edição lida da Editora Antofágica)
