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Crítica | Tropas Estelares

A incompreendida sátira antimilitarista de Paul Verhoeven.

por Ritter Fan
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O único inseto bom é o inseto morto!

Existem duas maneiras de se assistir Tropas Estelares: a errada, como uma ficção científica ultra-violenta de guerra em que humanos têm que dilacerar insetos alienígenas gigantes em algum lugar da galáxia e a certa, como uma inteligente sátira anti-belicista e anti-fascista ultra-violenta que tem humanos dilacerando insetos alienígenas gigantes em algum lugar da galáxia. O que Paul Verhoeven faz, aqui, é perfeitamente condizente com sua carreira como cineasta e uma certeira sátira de seu material fonte, o livro homônimo de Robert A. Heinlein tão acusado de fascismo e de glorificação do militarismo.

Mas existem sátiras e sátiras. As do primeiro tipo são aqueles que existem por si mesmas e chamam atenção momentânea, somente para serem esquecidas em seguida. As do segundo tipo permanecem com o espectador nem que seja subliminarmente, aos poucos abrindo caminho para realizações e conclusões que podem não ser exatamente óbvias a partir do momento em que elas acabam. E é óbvio que, em sendo um filme de Verhoeven, estamos falando, aqui, do segundo tipo de sátira, que ele aborda de maneira muito parecida com o expediente que usou em RoboCop, ou seja, interrompendo a narrativa com trechos de telejornais que, aqui, são adicionados de peças de propaganda de recrutamento e outras que não só funcionam, com seus exageros, para criar a perspectiva necessária, como também para contextualizar a história em si que começa já com a guerra entre humanos e insetos iniciada e retorna no tempo para contar a história das carreiras militares de John “Johnny” Rico (Casper Van Dien), que se alista no exército unicamente para seguir seus amigos e de Carmen Ibanez (Denise Richards), uma jovem que sempre sonhou em ser piloto e por quem Rico se interessa, além de, subsidiariamente, a de Isabelle “Dizzy” Flores (Dina Meyer), apaixonada por Rico e, muito de leve, também a de Carl Jenkins (Neil Patrick Harris), gênio e amigo de escola dos outros três.

O problema – se é que posso chamar isso de problema – é que Paul Verhoeven é esperto demais para o seu próprio bem e a crítica e a sátira de Tropas Estelares provavelmente passaram longe da compreensão de muita gente que à época do lançamento do filme e até hoje em dia prefere só enxergar a pancadaria da superfície seja para elogiá-la sem pensar, seja para odiá-la sem perceber a sutileza Esse talvez seja um filme que tivesse que começar com um aviso sobre como interpretá-lo, especialmente considerando a quantidade de gente que o taxou imediatamente de fascista e militarista, enquanto que ele é justamente o contrário porque Verhoeven propositalmente soube usar sua obra para estocar o material fonte de Heinlein, esse sim de abordagem no mínimo polêmica, ainda que o autor tenha se provado posteriormente como alguém de visão muito mais equilibrada do que deixou transparecer nessa obra em particular.

Na verdade, o trabalho cirúrgico foi mesmo de Edward Neumeier no roteiro que havia escrito para o que seria a versão original de Tropas EstelaresBug Hunt at Outpost Nine. Vendo as conexões com o romance belicista de Heinlein, a produção adquiriu os direitos sobre ela e o roteirista arregaçou as mangas para transformar seu trabalho em uma efetiva adaptação do livro, mas com o cuidado de inserir as já mencionadas abordagens satíricas. É particularmente interessante notar que, em termos narrativos, ou seja, em termos de história sendo contada, o roteiro é superior ao livro, uma exceção que confirma a regra das adaptações cinematográficas de obras literárias. Como a obra de Heinlein é, reduzindo em miúdos, um longo monólogo interno de Rico desde seu alistamento até seu triunfo como soldado de infantaria nesse futuro distópico em que só os veteranos das Forças Armadas é que são considerados cidadãos de uma federação planetária, há pouco espaço para o desenvolvimento de personagens, que são só citados aqui e ali, sem ganharem camadas ou mesmo personalidades completas. Neumeier, que fora responsável pelo roteiro de RoboCop, organiza o conteúdo do livro em células e pega personagens citados e os desenvolve como é o caso principalmente de Carmen, além de emprestar uma abrangência maior a esse fascinante mundo criado por Heinlein. A surpresa é o quão próximo os acontecimentos do filme são do livro mesmo com o foco saindo de Rico por diversas vezes e o quanto de sátira e crítica social Neumeier consegue inserir em seu texto.

Mas esses elementos críticos à exata compreensão de Tropas Estelares vêm também do lado visual, revelando o cuidado de Verhoeven em cada detalhe, a começar da escalação de seu elenco principal. No lugar de escolher talento dramático, que seria o caminho óbvio a ser trilhado, o diretor escolheu, acima de tudo, a beleza arquetípica: pele imaculada, olhos claros, dentes brancos, músculos torneados, cabelos lisos e cheios. Tentei ser satírico aqui, mas vou ser direto, pois, ao mencionar “beleza arquetípica”, quis dizer a “beleza arquetípica ariana”, já que o que vemos são jovens que são caracterizados de forma a orgulharem Hitler em sua psicopatia da “raça pura”. E, mesmo com um elenco limitado dramaticamente (vamos combinar que Van Dien e Richards podem até ser lindos, mas são dois dos piores atores que já singraram as telonas), para o objetivo do filme, eles mais do que cumprem seu papel, entregando à perfeição os Übermensch de Nietzsche, que foram abraçados de forma retorcida pelo genocida nazista.

Se a ultra-violência, os exageros constantes e o exército formado de homens e mulheres “perfeitos” não fossem pistas suficientes, os figurinos que Verhoeven encomendou a Ellen Mirojnick refletem os da Wermacht e também – no caso dos oficiais de inteligência – dos Camisas-Negras de Mussolini. Indo um pouco mais além, uma das peças publicitárias que vemos no decorrer da produção é um excelente reencenamento da sequência da manifestação ao ar livre que é possível ser conferida em Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl. Ou seja, o cineasta não deixa pedra sobre pedra aqui desde que o espectador esteja disposto a ir além do “filme sobre soldados que matam insetos monstruosos em um planeta distante”.

Mas esse filme sobre soldados que matam insetos monstruosos em um planeta distante também é executado de maneira muito eficiente. É bem verdade que o roteiro de Neumeier não é exatamente fluido, por ele ter escolhido uma estrutura episódica que nem sempre funciona muito bem, mas Verhoeven transporta a visão do roteirista para as telonas de maneira muito competente, com sequências complexas repletas de figurantes em tomadas gerais de tirar o fôlego, além de um CGI de priscas eras que, por incrível que pareça, envelheceu muito bem. E os monstrengos feitos com animatrônicos e efeitos práticos são do mais alto gabarito, com ótimo realismo – dentro da “irrealidade” da sátira que constrói, claro – e enormes oportunidades para muito gore e muitas vísceras de baratas gigantes.

Tropas Estelares é uma grande e inteligente adaptação do polêmico livro homônimo, além de ser uma eficientíssima sátira de seu conteúdo, tudo em um pacote coeso, repleto de exageros bombásticos, atuações canastronas como deveriam mesmo ser e efeitos que sobrevivem ao teste do tempo. É Verhoeven na veia para ninguém botar defeito!

Tropas Estelares (Starship Troopers, EUA – 1997)
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: Edward Neumeier (baseado em romance de Robert A. Heinlein)
Elenco: Casper Van Dien, Dina Meyer, Denise Richards, Jake Busey, Neil Patrick Harris, Clancy Brown, Seth Gilliam, Patrick Muldoon, Michael Ironside, Rue McClanahan, Marshall Bell, Eric Bruskotter, Matt Levin, Blake Lindsley, Anthony Ruivivar, Christopher Curry, Lenore Kasdorf, Denise Dowse, Brenda Strong
Duração: 129 min.

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