Home LiteraturaAcadêmico/Jornalístico Crítica | Tubarão: Diário de Bordo (The Jaws Log), de Carl Gottlieb

Crítica | Tubarão: Diário de Bordo (The Jaws Log), de Carl Gottlieb

Um verdadeiro manual sobre a Hollywood moderna.

por Ritter Fan
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Tubarão, o livro de 1974 de Peter Benchley, foi um sucesso de vendas, figurando na lista dos mais vendidos por 44 semanas seguidas nos EUA. Tubarão, o filme de 1975 de Steven Spielberg, foi um sucesso de bilheteria, sendo literalmente considerado como o primeiro blockbuster de verão da História do Cinema. E, talvez menos conhecido, Tubarão: Diário de Bordo (minha tradução livre para The Jaws Log, já que até onde pesquisei, não houve publicação no Brasil), livro sobre a produção do filme lançado ainda em 1975 por Carl Gottlieb, co-roteirista, foi também um enorme sucesso de vendas e é até hoje reverenciado como uma das melhores obras literárias de making of cinematográfico. Nada mal, não é mesmo?

Mas o curto livro que Gottlieb escreveu antes mesmo de Tubarão tornar-se o sucesso que se tornou é mais do que apenas um dos melhores livros sobre a realização de uma obra cinematográfica. Apesar de existirem diversas obras literárias sobre a produção dos mais variados filmes – o mais antigo deles, até onde sei, é o sensacional e singelamente intitulado Filme, de Lillian Ross, sobre A Glória de um Covarde, retumbante fracasso de John Huston -, Tubarão: Diário de Bordo é um raríssimo exemplar de um making of literário escrito por alguém que efetivamente participou da produção da obra do começo ao fim, sendo realmente uma das forças motrizes para o sucesso do longa.

Ross também participou da produção do citado filme de guerra de Huston, vale lembrar, mas apenas na qualidade de jornalista observadora com o objetivo de escrever um relato sobre a produção. Gottlieb, que dividiu os créditos de roteiro com o próprio Peter Benchley, redator das primeiras versões do roteiro, arregaçou as mangas diariamente em locação, na ilha de Martha’s Vineyard, na região nordeste dos EUA, inclusive dividindo a casa principal com o próprio Steven Spielberg, para fazer todas as alterações de roteiro nos poucos dias entre sua contratação e o início das filmagens e, também e principalmente, durante as referidas filmagens, além de fazer uma ponta como ator, no papel de Harry Meadows, editor do jornal da fictícia ilha de Amity, ponta essa que, ironicamente, ele mesmo teve que drasticamente reduzir durante suas revisões do texto, criando, como ele mesmo diz, um conflito mental entre sua persona roteirista e sua persona ator.

Essa visão privilegiada de Gottlieb aliada à sua escrita realmente gostosa de se ler e que não exatamente doura a pílula, deixando entrever os sérios problemas enfrentados por todos os envolvidos, o que evita aquela impressão de uma obra puramente chapa branca, resulta em um livro que simplesmente precisa ser lido por qualquer um que goste de Cinema. E não, não é necessário entender profundamente dos meandros de uma produção cinematográfica, pois o autor faz questão de, organicamente, explicar os termos mais complexos e as funções menos óbvias, tudo isso enquanto faz uma abordagem cronológica que começa em junho de 1971, muito antes de ele se envolver na produção, com a aquisição dos direitos de adaptação cinematográfica do romance de Benchley, que ainda era um rascunho, e vai até as bem-sucedidas sessões de teste do filme pelos EUA em abril de 1975, pouco tempo antes do explosivo lançamento em 20 de junho daquele ano. Em 2005, Gottlieb voltou ao seu livro para expandi-lo, escolhendo fazer isso por meio de inserção de notas explicativas e expansivas ao final da obra (o que irrita um pouco o leitor, que tem que ficar pulando páginas – eu uso dois marcadores para facilitar, mas continua irritante) que dão ainda mais contexto ao que ele escreveu, trazendo seu livro para os “tempos modernos”, por assim dizer. A versão expandida, lançada para comemorar 50 anos tanto do filme quanto do livro, foi a que levei em consideração para escrever a presente crítica.

Apesar de definitivamente não ser um livro vazio de opiniões, como a obra foi “encomendada” e Gottlieb, naquela época ainda ativamente envolvido no mundo dos estúdios, soube dar os créditos devidos aos nomes mais relevantes – lembrando que Spielberg não era, ainda, Steven Spielberg -, especialmente para os produtores Richard Zanuck e David Brown, o primeiro em Hollywood e o segundo em Nova York, que, juntos, usaram seus contatos nas costas opostas do país e nas indústrias audiovisual e literária para não só terem acesso ao que ainda eram apenas as ideias manuscritas de Benchley, como para perceberem que havia algo valioso ali, algo que eles trataram de comprar e já colocar a máquina dos estúdios girando. O fato de o livro começar tão cedo no processo criativo dos produtores é alvissareiro, pois permite um mergulho consideravelmente na forma de se fazer filmes que se repete até hoje e que pode ser vista, de maneira muito parecida, na gênese de O Poderoso Chefão, conforme o recente e excelente livro jornalístico Leave the Gun, Take the Cannoli, de Mark Seal.

No entanto, Gottlieb mostra que tinha visão e dedica muito espaço a basicamente todos na linha de produção, sejam os lampejos visionários de um Spielberg em formação, seja a presença constante da lendária montadora Verna Fields também em locação – algo raríssimo – já iniciando seu trabalho por lá com base nos copiões diários, sejam os trabalhos essenciais da equipe de escalação, de procura de locações, de câmera (inclusive a segunda unidade filmando na Austrália) e, claro, de efeitos especiais e a famosa e complicada construção do tubarão mecânico que deu uma dor de cabeça enorme a todo mundo já no finalzinho da atrasada agenda de filmagens, já que tudo o que dependia do peixe artificial foi deixado para os últimos dias.

Há, também, uma refrescante abordagem de Gottlieb sobre os atores de menor relevância e fama que costumam ser esquecidos em obras dessa natureza. Não só há comentários longos sobre a carreira e o trabalho de Murray Hamilton, que vive o prefeito Larry Vaughn que quer manter em segredo a presença do tubarão, como até mesmo extras contratados na ilha ganham destaque, especialmente Craig Kingsbury, que vive Ben Gardner, o homem que tem sua cabeça achada em seu barco por Hooper. Obviamente que a trinca principal de atores – Roy Scheider, Richard Dreyfuss e Robert Shaw – figuram de maneira proeminente nos comentários do autor sobre o elenco, mas com uma visão quase sardônica (no melhor sentido da palavra, se é que me entendem) deles, seja quando Gottlieb relata sobre o ataque que Scheider dá lá pelo final da produção, representando o desgaste de todos ali, seja quando trata Dreyfuss como Ricky (ele eram amigos) e o caracteriza como baixinho e mulherengo, seja quando, mesmo com reverência a Shaw, não deixa de abordar seus problemas com a Receita Federal americana que queria abocanhar parte de seu cachê antes de ele voltar para Irlanda e seu alcoolismo.

Como se isso não bastasse, Gottlieb deixa ainda evidente que, diferente da percepção popular, Tubarão nunca sofreu de pressões exacerbadas dos executivos da Universal Studios, já que havia um consenso de que, com o cada vez maior sucesso do romance de Benchley, o filme seria estrondoso nas bilheterias, valendo gastos que poderiam ser vistos como excessivos, como fretar um jatinho só para levar um tubarão tigre caçado na Flórida para a locação das filmagens de forma a usá-lo na sequência do frenesi de pesca causado pela recompensa que o prefeito promete a quem capturar o tubarão assassino (o cheiro do peixe em decomposição, segundo o autor, era insuportável e era impossível chegar muito perto por muito tempo, com a equipe de maquiagem tendo que retocar a pele do animal para disfarçar a podridão). Nessa mesma linha, Gottlieb tira uma dúvida que passou a fazer parte do imaginário popular de quem gosta de fofocas de bastidores: em sua visão, apesar de contatado por Spielberg e de ter feito sugestões aqui e ali ao telefone, John Milius não escreveu o famoso monólogo do USS Indianapolis de Quint. Segundo o autor, foi o próprio Shaw, que também era romancista, que criou a versão final do que vemos na tela, com o detalhe que ele próprio chegou bêbado no primeiro dia de filmagem dessa sequência e que isso, na montagem final, ainda aparece de forma bem clara para quem testemunhou esses momentos.

Tubarão: Diário de Bordo é, sem sombra de dúvidas, um rico retrato de um dos filmes americanos modernos mais importantes para a indústria cinematográfica, algo que é ainda mais impressionante quando notamos a maestria de Gottlieb em trazer tanta informação em um número relativamente pequeno de páginas. É até mesmo possível dizer que, se o romance de Benchley foi um marco da literatura envolvendo animais monstruosos e o filme de Spielberg foi um marco para a produção cinematográfica em si, o pequeno livro de Gottlieb é um marco raro – talvez único – de um gênero literário/jornalístico que ajudou a criar ou, no mínimo, sedimentar esse próprio gênero.

Tubarão: Diário de Bordo (The Jaws Log – EUA, 1975/2005)
Autor: Carl Gottlieb
Editora original: Dell Publishing (edição original), Newmarket Press (versão expandida de 30 anos)
Data original de publicação: julho de 1975 (edição original), maio de 2005 (versão expandida de 30 anos)
Páginas: 191 (edição original), 227 (versão expandia de 30 anos – versão lida para a presente crítica)

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