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Crítica | Tudo Isto Aconteceu Amanhã

A continuação de "Tudo Isto Acontecerá Ontem".

por Luiz Santiago
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Em 2015, Casty e Massimo Bonfatti publicaram na revista Topolino uma aventura chamada Tudo Isto Acontecerá Ontem, história integrante da saga Máquina do Tempo, que enviava Mickey para o passado a fim de impedir um plano do Bafo de Onça para dominar o mundo. Três anos depois, a pedido da editora da revista (Valentina De Poli), a dupla dinâmica voltou a visitar esse enredo, criando uma continuação que também se encaixava como comemoração dos 90 anos do Mickey, completados em 2018. Nesta sequência, a exigência é ainda maior que a da trama original, e já começa apresentando migalhas através da linha do tempo com quatro prólogos, onde os autores mostram as brincadeiras visuais da edição.

No primeiro deles, chamado Um Dia de Compras, temos uma cena que me fez pensar maldosamente que Minnie estava vendo o Mickey se comportando como ela majoritariamente se comporta: de maneira banal, aérea e consumista (atrevam-se a dizer que eu estou mentindo!). Assim como os outros três, este bloco planta uma semente muito importante que gerará frutos nas outras duas partes da saga. Em O Fantasma Caribenho, que é hilário, voltamos para os anos 1930 e vemos o Pateta às voltas com uma musiquinha que ele atribui a um fantasma, mas que na verdade tem a ver com o celular deixado pelo Mickey naquele tempo. Este aparelho — com um imenso poder de bateria, vamos simplesmente aceitar — será uma “crono-porta” entre os personagens dessa década e os dos anos 2010. Já em A Condessa Perplexa vemos o rato num comportamento estranhíssimo, cuja explicação só virá ao final da história, não sem algum problema. Por fim, em O Milionésimo Cliente, temos uma crítica aberta aos smart watches dessa realidade, que são utilizados pelo sistema do Bafo para controlar a população.

O que mais nos intriga no começo dessa história é o fato de o mundo estar dominado pelo vilão, enigma estranho para o leitor que viu, na aventura passada, os mocinhos vencerem e impedirem o tenebroso futuro nas mãos do Baforento. E que futuro, senhoras e senhores! Casty e Bonfatti exploram aqui as características que encontramos em governos fascistas, com a tentativa de controle absoluto da população, dominação completa da imprensa por um único meio/ordem de produção (e nesse caso, é realmente o Estado, porque é dito que o Bafo agora é líder de Calisota), culto ao líder e prisão/morte de opositores. Claro que isso está colocado “à maneira Disney“, mas que não esconde a violência do ato, basta lembrar da cena em que as máquinas fazem o escaneamento facial de um falsário e o jogam numa espécie de bueiro onde tem um leão esperando. As pessoas nessa realidade também são controladas por um dispositivo chamado “bafoogle“, que é um smart watch acoplado a um sistema que define tudo o que o indivíduo deve fazer para que não perca o apreço da máquina e não seja parado pela polícia — me lembrou um pouco 15 Milhões de Méritos, episódio de Black Mirror.

Contudo, a referência mais forte aqui é certamente feita ao livro 1984, de George Orwell. Parece clichê o uso dessa obra para ambientar histórias em futuros distópicos, mas esse tipo de relação, quando bem feita, só traz benefícios para a história. Há um sistema de vigilância por toda a cidade, filmando as pessoas em todos os lugares, ouvindo as pessoas nas ruas, identificando sua localização, ouvindo o que dizem ou monitorando o que fazem em casa. A palavra “contrariado (a)“, por exemplo, não pode ser atribuída a ninguém, porque isso já aciona a polícia. Não se pode falar mal de quem está no poder, demonstrar descontentamento com o andamento das coisas ou agir fora do horário estipulado pelo Bafo, porque as forças de repressão já estão prontas para levar o infrator para a cadeia. Em inúmeros aspectos, essas regras podem ser encontradas em diversos países pelo mundo a fora, em situações diferentes ou extremas, é verdade, mas existem. E sobre a questão do controle tecnológico, por pior que seja admitir, a verdade é que ela já existe do jeitinho que os autores criticam nos quadrinhos. É assustador.

A salvação do mundo, nesse caso, é muito mais complexa porque o grupo está sem a máquina do tempo, que foi destruída pelo Bafo. Mas os autores fazem valer a participação de Zapotec e Marlin na aventura, fazendo-os criar uma alternativa para a viagem no tempo. E desta vez, ela acontece no sentido oposto: são os personagens da década de 1930 que acabam vindo para o presente, o que mostra a tentativa de os autores variarem o ponto de vista, o que se mostrou uma ótima escolha. Achei, inclusive, os diálogos para os personagens melhor escritos aqui, inclusive nas partes mais bobas e nas cenas de humor fácil. Exceto alguns poucos quadros imensamente didáticos e que quebram um tanto a grandeza do excelente roteiro de Casty, a história flui de maneira deliciosa e tensa, sempre com o leitor sem saber como Mickey e companhia irão resolver o problema.

E então temos o paradoxo temporal. Confesso que não gosto do tipo que o autor escolheu, mas é apenas uma questão pessoal mesmo. E o curioso é que a escolha dele, nessa esfera, é diferente da escolha da primeira história! Naquela ocasião, uma mudança na linha do tempo alterava tudo o que acontecesse nela no futuro — é assim, por exemplo, que Mickey consegue impedir que o Bafo domine o mundo: resolvendo o caso da Luva de Amnèzja no passado. Já nessa história, a opção de Casty foi a de que a mudança em uma linha do tempo não alteraria o futuro, mas criaria uma linha paralela, que representaria o mundo após a mudança realizada no passado. É isso que depreendemos da resolução do presente caso: se Mickey e Pateta destruíram a Luva de Amnèzja em 2015, o Bafo não teria como roubar a tal luva, e o futuro distópico de 2018 não teria acontecido, logo, essa história também não. Ou seja, explicação que temos é que o autor mudou sua concepção de criação de um paradoxo temporal. Está tudo bem, isso não é um erro, é apenas uma escolha narrativa, embora eu não seja muito fã dela.

Tudo Isto Aconteceu Amanhã aponta para os perigos que a tecnologia pode trazer, mas sem demonizá-la. O mal uso que as pessoas ou os governos fazem das redes, programas e aparelhos é o verdadeiro problema. E mais uma vez terminamos a aventura com um belo discurso sobre a importância da amizade. Há uma cena linda, no pôr-do-Sol, que marca a despedida dos personagens das diferentes décadas, e coloca cada um em seus mundos “normais”, vivendo as aventuras que deveriam viver, com os perigos comuns do dia a dia e as ameaças e controle social que as grandes corporações normalmente fariam ao longo dos anos. Uma excelente ironia em uma aventura crítica, cheia de ação, de momentos engraçados e de uma boa lição sobre trabalho em grupo e sobre o lado sombrio da tecnologia.

Tutto questo accadde domani — Itália, 3 de outubro de 2018
Código da História: I TL 3280-6P
Publicação original:
Topolino (libretto) 3280
Editora original: Mondadori, Disney Italia, Panini Comics
No Brasil: O Grande Almanaque Disney #1 (Culturama, abril de 2019)
Roteiro: Casty
Arte: Casty, Massimo Bonfatti
Capa original: Paolo Mottura
88 páginas

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