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Crítica | Tudo Sobre Mim!: Minha Notável Vida no Show Business, de Mel Brooks

O crepúsculo de uma lenda.

por Ritter Fan
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livro tradicional

Apesar de já ter lido algumas, não consigo me conectar com biografias em geral, tendo enorme dificuldade para avançar nelas. É assim desde que me conheço como gente e, agora, a essa altura da vida, dificilmente mudarei. Mas biografias não são nada em comparação com autobiografias. Antes desta aqui, objeto da presente crítica, havia lido apenas duas, ainda que bem longas. Nesse subgênero, consigo mais facilmente identificar a razão, que é muitas vezes o autor tentar ser político e não falar mal de absolutamente ninguém que fez parte de sua vida. Até mesmo eventos históricos se perdem em explicações chapa branca demais para o meu gosto.

Mas então porque diabos você resolveu ler a autobiografia de Mel Brooks? – você perguntarão com toda razão. Bem, para começar, gosto muito do comediante, cineasta, roteirista, compositor, produtor e ator e, em 2021, ele completou 95 anos de idade, o que me levou à trazer para o site as críticas de todas os filmes dirigidos por ele que porventura ainda não tínhamos, tudo isso já sabendo que, no final do ano, ele lançaria seu livro que escreveu ao longo do primeiro ano de pandemia. Além disso, fiquei genuinamente curioso pelos detalhes da trajetória dele, considerando que ele entrou de verdade na indústria do entretenimento em 1950, ou seja, quando ela estava entrando em ebulição nos EUA com a chegada da televisão que muitos viam como o fim do cinema. Portanto, embarquei na jornada de peito aberto.

E eu não me arrependi, pelo menos não completamente. Sim, os problemas que normalmente encontro em autobiografias estão bem presentes no texto de Brooks. Só há elogios a si mesmo e a todos que o cercaram e cercam – curiosamente, sua mãe é alvo de um dos poucos comentários negativos, ainda que escrito jocosamente, em que ele revela que, por ela não ter dinheiro e arrancar dentes custava mais barato do que tratá-los, ela mandava arrancar os dentes de Brooks e seus irmãos sempre que um deles sentia dor por ali -, e também ao show business como um todo. Há uma riqueza de adjetivos superlativos para todo mundo, começando por sua família, passando pelo seu tempo no exército durante a Segunda Guerra Mundial, por Sid Caesar, que lhe deu o primeiro emprego, todos os atores e técnicos de seus filmes, Anne Bancroft, sua segunda esposa, e assim por diante.

No entanto, Brooks não esconde sua empolgação na forma que escreve e parece querer deixar uma espécie de resumo dos melhores momentos de sua vida como um de seus legados. Se o leitor compreender e aceitar essa premissa, que está inclusive presente no exageradamente autoindulgente título que tomei a liberdade de traduzir para o português já que, na data de redação da presente crítica, ele não havia sido publicado no Brasil, então o livro fluirá. Além disso, Brooks faz o óbvio e narra os acontecimentos cronologicamente, começando com três capítulos narrando sua vida como criança no Brooklyn, adolescente em um campo de férias e já jovem adulta na guerra, para então dedicar o maior capítulo a seus anos formativos como um dos roteiristas de Sid Caesar, que criou o extremamente importante programa ao vivo de variedades Your Show of Shows, entre 1950 e 1954, que é um dos marcos televisivos americanos por levar para a sala de estar da população o tipo de entretenimento que, antes, só era acessível em shows ao vivo em teatros.

O que segue desses anos decisivos na vida do autor é uma espécie de desaquecimento de seu mercado de trabalho, mas que ele usa para amplificar seus contatos na área, algo que vem de sua clássica, mas informal parceria com Carl Reiner no hilário dueto improvisado 2000-Year-Old Man em que Reiner faz perguntas aleatórias ao personagem de Brooks, que tem 2 mil anos de idade, e que ele responde na lata, sem roteiro (tem algumas edições no Spotify, inclusive a primeira – escutem!), de sua aparição no programa de Johnny Carson, de um almoço semanal que ele organiza com celebridades variadas e, claro, o início de relacionamento com Bancroft, o amor de sua vida, com quem permaneceu casado de 1964 até o falecimento dela em 2005. Há uma riqueza muito grande de informações nesses períodos mais obscuros da vida de Mel Brooks que ele tem gosto em explicar, mas sem jamais mergulhar profundamente em cada um deles e, novamente, sempre elogiando efusivamente todo mundo e a si mesmo, pois um homem de 95 anos com o sucesso que teve não precisa mais se preocupar com coisas como modéstia, sejamos sinceros.

Depois desse seu passado pré-obras audiovisuais famosas de sua autoria, ele passa a nomear os capítulos com o nome de suas criações, começando por sua série de TV clássica Get Smart (Agente 86 por aqui) e seguindo com um capítulo para cada filme que dirigiu, outro para Sou Ou Não Sou, que ele produziu e estrelou ao lado de Bancroft (o único protagonizado pelo casal) e três intercalados para lidar com sua produtora Brooksfilms, de forma que ele pudesse abordar importantes longas como O Homem Elefante e A Mosca. Nessa grande seção da autobiografia, a estrutura de “anedotas de um cineasta” é mais evidente e o livro perde em coesão, especialmente quando ele passa a desnecessariamente transcrever diálogos demais dos longas e a descrever sequências que ele reputa importante, como se alguém que fosse ler sua obra não tivesse assistido a tudo antes.

Claro que há anedotas interessantíssimas, como a origem de Primavera para Hitler, que ele inteligentemente já prepara para o leitor desde sua fase pré-estrelato, e o périplo que foi convencer algum estúdio de bancar um filme de basicamente um zé-ninguém sobre um produtor montando uma peça que elogia Hitler. Aliás, o título original em inglês – The Producers – foi uma exigência não da produtora, mas dos exibidores, que se recusaram a colocar em suas marquises o nome do genocida austríaco, algo que não foi empecilho na Europa ou no Brasil. Também é muito interessante ler os relatos de Brooks sobre os atores com quem trabalhou, especialmente Gene Wilder e, também, com executivos dos estúdios, como o brilhante e, diria, pioneiro, Alan Ladd Jr., então da Fox, responsável por bancar seu O Jovem Frankenstein que ninguém queria fazer em preto e branco e, nos anos seguintes, ser o grande responsável por obras como Guerra nas Estrelas e Alien, o Oitavo Passageiro. E, lógico, é impagável ele contando sobre seus almoços com ninguém menos do que Alfred Hitchcock para eles conversarem sobre Alta Ansiedade, incluindo uma indiscrição que ele comete ao dizer que o Mestre do Suspense, uma vez, ficou entalado no porta de entrada em razão de sua… circunferência…

Brooks, apesar de depender muito de transcrições de trechos de roteiros e, em alguns casos, de discursos de aceitação de prêmios, mantém a atenção do leitor ao manter o tom cômico de seu texto e, principalmente, ao caminhar sempre rapidamente para frente, com capítulos relativamente curtos para cada um de seus filmes, com a mais notável exceção sendo, naturalmente, para seu primeiro e fechando esse lado do show business com a produção do musical da Broadway baseado em Primavera para Hitler, sua primeira incursão nessa arte e que ele dedica um bom número de páginas, demonstrando seu carinho por essa sua criação que só encontra paralelo mesmo nas palavras que dedica à Anne Bancroft toda vez que fala dela.

Com Tudo Sobre Mim!, Mel Brooks entrega o que promete no título e realmente deixa evidente que sua vida no show business foi – e ainda é – absolutamente notável, mesmo que ele propositalmente tenha escrito um livro 100% chapa branca em que tudo e todos são sempre sensacionais, maravilhosos e incríveis. Mas, sendo ele próprio todas essas coisas, não há como deixar de perdoar o inesquecível comediante por querer, no alto de seus 95 anos, deixar um relato altamente positivo sobre seus bem vividos anos de show business.

áudio livro 

Há alguns anos, como forma de preencher os espaços de locomoção para o trabalho e por vezes até para servir de “trilha sonora” para banhos, adotei o áudio livro como um alternativa literária (mas que só uso mesmo, de verdade, para ouvir palestras sobre assuntos que me interessam). E, nesse processo, vinha reparando que, em diversas autobiografias, os próprios autobiografados liam seus livros, como foi o caso de Bruce Springsteen, Matthew McConaughey e até Barack Obama. Quando soube que Mel Brooks leria sua própria obra, resolvi apostar em algo que nunca tinha feito antes dessa maneira: a leitura acompanhada do áudio.

Em outras palavras, eu lia algumas páginas e, em seguida, escutava o áudio correspondente, por vezes avançando em um mais do que o outro, mas sempre tentando manter a leitura à frente do áudio. E olha, foi difícil não correr com o áudio, tenho que confessar, pois, nele, Mel Brooks é absolutamente brilhante e não dá vontade de parar. Temos que lembrar que estamos falando de um senhor de 95 anos, mas sua voz é firme, clara, poderosa e, sobretudo, incrivelmente engajada. Percebe-se paixão, dedicação, verdadeira alegria em seu trabalho de leitura de sua autobiografia que por vezes é tão natural, mas tão natural, que parece que ele está simplesmente dando uma entrevista e falando de improviso (e não está, para ficar bem claro).

Quando ele fala de alguém que realmente admira, ou seja, que não é só um daqueles elogios “obrigatórios”, suas palavras reverberam saudades, respeito e amor, como é o caso de quando ele fala de Sid Caesar e, especialmente, de Anne Bancroft. Percebe-se também tristeza em algumas passagens, claro, mas que ele não deixas contaminar sua leitura. Além disso, ele genuinamente ri de alguns trechos, especialmente aqueles que são extraídos de roteiros de seus filmes, como na famosa sequência em que os cowboys soltam flatulências na pradaria silenciosa em Banzé no Oeste. E, como se isso não fosse suficiente, Brooks lê os diálogos fazendo as vozes dos personagens, seus sotaques e inflexões e, quando ele cita letras de música, ele faz questão de cantá-las (todas elas!).

Não tenho ideia se todas as autobiografias narradas pelos próprios autores são assim, mas Mel Brooks, aqui, consegue até mesmo corrigir vários dos problemas de metralhadora de elogios, já que o texto mais frio ganha vida com sua voz realmente emocionada por ler sua vida para milhões de pessoas mundo a fora, por vezes até mesmo me lembrando do avô contando a história de A Princesa Prometida para seu netinho no filme. O que já era bom, apesar de toda minha relutância, fica sensacional com o próprio autor fazendo de tudo para transformar a experiência do áudio-livro em algo realmente único e imperdível.

Tudo Sobre Mim!: Minha Notável Vida no Show Business, de Mel Brooks (All About Me!: My Remarkable Life in Show Business – EUA, 2021)
Autor: Mel Brooks
Editora original: Ballantine Books
Data original de publicação: 30 de novembro de 2021
Páginas: 480

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