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Crítica | Ulisses (1954)

por Ritter Fan
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estrelas 2,5

Os filmes do subgênero “espada e sandálias”, ou peplum, existem desde que o Cinema é Cinema, mas sem ganhar esses nomes coloridos. Talvez os primeiros tenham sido ainda na era do Cinema Mudo, na inesgotável série de obras tendo Maciste, personagem que aparece no clássico Cabíria, de 1914, como protagonista. Mas a consolidação e batismo mesmo do “espada e sandálias” só viria mesmo com Spartaco, de Riccardo Freda, de 1953, e, logo no ano seguinte, com A Invasão dos Bárbaros, de Pietro Francisci, e com Ulisses, de Mario Camerini (co-dirigido por Mario Bava, que não levou crédito), ambos curiosamente com o mexicano Anthony Quinn no elenco – como protagonista no primeiro e principal antagonista no segundo – então fazendo carreira na Itália e que atuou no belíssimo A Estrada da Vida, de Federico Fellini, entre um e outro.

O referido subgênero cinematográfico nada mais é do que a resposta italiana aos grandes épicos – normalmente bíblicos – que Hollywood se esmerava em lançar na época, muitos dos quais filmados na própria Itália querendo reergue-se do pós-guerra e tendo o restabelecendo da Cinecittà como parte do plano. Em simples palavras, o peplum está para os filmes épicos assim como o Western Spaghetti está para os faroestes, com um subgênero quase que literalmente “substituindo” o outro com o avanço dos anos, já que a febre de “espada e sandália” teve seu auge apenas entre 1954 e 1965. Como características mais marcantes, o subgênero tinha o orçamento marcadamente mais baixo que o de Hollywood, mas o mesmo tipo de ambição grandiosa, com resultado estético, portanto, bastante discutível, além de roteiros simplistas algo parecidos com os blockbusters mais rasteiros que vemos a indústria americana lançar a cada ano.

Mas não se pode dizer que essa moda não gerou obras divertidas e Ulisses certamente é uma delas. O roteiro, escrito por sete escritores, inclusive o diretor, é, como se poderia esperar, uma colcha de retalhos que usa o clássico Odisseia, de Homero, como fonte inspiradora para contar as desventuras do Rei Ulisses retornando da Guerra de Troia, que o manteve longe de seu lar, a ilha de Ítaca, de sua esposa Penélope (Silvana Mangano, que também vive a bruxa Circe) e de seu filho Telêmaco (Franco Interlenghi), por 10 anos e que fora objeto da Ilíada. Como é de conhecimento geral, esse retorno, que deveria ter sido breve, demora outros 10 anos em razão de um vingativo Netuno que desvia o caminho do herói, colocando-o diante dos mais variados obstáculos.

O filme porém, extirpa qualquer significado mais profundo que a obra de Homero tem e faz a “versão Twitter” do poema épico. Não há nem mesmo o cuidado em se criar um arco de desenvolvimento para o protagonista. Ele começa e acaba o filme da mesma forma, como se tudo tivesse se passado ao longo de 10 dias e não 10 anos. É até complicado sentir tensão ou mesmo empatia pelo sofrimento de Ulisses, considerando a forma rasa como um pires que ele é escrito. Kirk Douglas, em seu primeiro papel dessa natureza – ele voltaria com Vikings, Os Conquistadores, em 1958, e, mais famosamente, Spartacus, em 1960) -, portanto, não tem como fazer mágica e entra no modo “caras e bocas” para trazer Ulisses à vida. Muitos berros, muitos gestos exagerados, muito torso nu e um rosto envolvido em barba é o que o espectador leva da experiência de se assistir ao filme, o que ajuda a amplificar a ideia de que Douglas só faz tipos durões, o que não é uma verdade absoluta, mas também não está errado. A dublagem posterior – marca dos filmes italianos das décadas de 60 e 70, sem tecnologia eficiente para a captura de som em estúdio – não só de Douglas e Quinn, que atuaram em inglês, mas como também dos demais atores, mesmo os italianos, cria uma aura surreal ao filme, com o movimento labial fora de sincronia adicionando ao charme “tosco” que a fita inegavelmente tem.

Aliás, é particularmente curioso como os efeitos especiais se seguram bem até hoje. Polifemo, o gigantesco ciclope filho de Netuno e devorador de humanos, merece aplausos pelo trabalho excepcional de maquiagem de Goffredo Rocchetti e Eugen Schüfftan que transformou o ator Umberto Silvestri na criatura de um olho só. A fotografia de Harold Rosson, por sua vez, passa a perfeita impressão do gigantismo do ser e isso sem uso de retroprojeção ou qualquer outro recurso além de uma câmera muito bem colocada. O uso de uma miniatura para trabalhar as sequências em alto-mar com o navio de Ulisses sofrendo as intempéries também é do mais alto gabarito, mesmo se comparado com outras obras da mesma época.

No entanto, como não poderia deixar de ser, a pressa em contar o máximo sobre a saga de Ulisses em um filme de menos de duas horas que ainda emprega tempo desproporcional em um enorme prelúdio lidando com a espera de Penélope e sua famosa estratégia de costurar e descosturar uma mortalha para evitar ter que casar novamente, acaba impedindo a apreciação tranquila da narrativa. A montagem não consegue se sustentar e, aos trancos e barrancos, acaba gerando um filme episódico e corrido, sem uma coesão narrativa significativa.

Ulisses, mesmo com seus vários problemas, ainda é um divertimento. Ele não só nos permite uma visão curiosa de Kirk Douglas pré-Spartacus, como também acaba sendo um dos mais interessantes exemplares do subgênero “espada e sandálias”.

Ulisses (Ulisse, Itália/EUA/França – 1954)
Direção: Mario Camerini
Roteiro: Franco Brusati, Mario Camerini, Ennio De Concini, Hugh Gray, Ben Hecht, Ivo Perilli, Irwin Shaw (baseado no poema épico de Homero)
Elenco: Kirk Douglas, Silvana Mangano, Anthony Quinn, Rossana Podestà, Jacques Dumesnil, Daniel Ivernel, Sylvie, Franco Interlenghi, Elena Zareschi, Evi Maltagliati, Ludmilla Dudarova, Tania Weber, Piero Lulli, Ferruccio Stagni, Alessandro Fersen, Oscar Andriani, Umberto Silvestri
Duração: 117 min.

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