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Crítica | Um Contratempo (2016)

Definitivamente um contratempo.

por Fernando JG
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Adrián Doria (Mario Casas) acorda atordoado num quarto de hotel e se depara com sua amante, Laura (Bárbara Lennie), morta. Ele não sabe o que aconteceu e logo a sua figura aparece como a principal suspeita dentro das investigações policiais. Não havia mais ninguém no quarto e ninguém poderia ter entrado lá. Mas afinal, o que houve? Ao contratar uma advogada para cuidar de seu caso, ambos reconstroem o que poderia ter ocorrido, contudo a história abre para caminhos que ninguém esperava. A morte de Laura é só uma consequência de coisas muito mais “cabulosas“, que vêm à tona com a reconstrução dos fatos. 

Nos últimos tempos, as produções espanholas da Netflix têm me surpreendido positivamente. Durante a Tormenta e O Poço são dois bons exemplos de enredos bem trabalhados. O que tem me pegado não são tanto os temas com os quais se empenham em filmar, que nunca passam da reciclagem de um material já conhecido, mas, sim, a maneira como são esculpidos os argumentos por meio de roteiros indiscutivelmente bem escritos. É o caso de Um Contratempo. Achamos estar diante de um longa-metragem emocionalmente afetado, com lugares-comuns empolgantes mas rasos, no entanto, estas afirmações não vingam e está aqui um filme que merece bons holofotes. 

Oriol Paulo, o diretor, já havia escrito Os Olhos de Julia com aquele toque de quem sabe o que está fazendo; e aqui, não foge à regra. Propondo uma trama-labirinto, isto é, uma história que se perde propositalmente dentro das inúmeras mentiras que compõem o núcleo principal, o cineasta cria algo de feição complexa e aprofunda a sua ideia de filme num nível potente, fazendo uma mistura de suspense e thriller num estilo whodunnit inconfundível, não deixando a peteca cair nenhuma vez. 

É com merecida notabilidade que reconheço que seu trabalho é muito bem feito. É comum que enredos que misturam inúmeras histórias numa única trama acabem se perdendo em algum momento, deixando alguma ponta por amarrar, esquecendo de algum personagem, mas o engenhoso cineasta tem agudeza no seu método e constrói um labirinto profundamente interconectado em seus mais diversos caminhos e não se perde em nenhuma esquina ou rua sem saída. Sendo este um longa-metragem de trama, a montagem mostra-se alinhada com o roteiro, em cuja atmosfera de cinismo paira sobre todas as conexões imagéticas feitas. 

Um Contratempo é um clássico exemplo do que se costuma chamar de “enredo complexo”, que são aqueles em que as peripécias e os reconhecimentos não ocorrem como parte da resolução da trama, como tradicionalmente ocorre nas tramas de “enredos simples”, mas como parte compositiva fundamental para que o filme dê seus primeiros passos. Ou seja, as reviravoltas e as descobertas não vão ocorrer no final, mas no começo, o que torna o seu filme ainda mais notável, demonstrando inteligência ao trabalhar com uma trama supostamente já resolvida, mas que descobrimos estar às voltas de um mistério sufocante e embaraçado. A gente acha que sabe de tudo, mas não sabemos de absolutamente nada. 

Chamo a atenção ao fato de que cada personagem tem importância fílmica vigorosa. Nenhum dos que aparecem na tela e que compõem a trama são dispensáveis. Dos protagonistas aos coadjuvantes, todos são relevantes para o curso dramático, de modo que o cineasta os faz se reencontram num ponto específico do filme, ligando ponto a ponto desse roteiro-labirinto de que propõe, sem deixar um fiozinho para fora da medida. O filme de Oriol Paulo ocorre como uma tessitura, costurando todas as partes para chegar numa espécie de ápice – e que ápice! O talentoso diretor tem domínio das técnicas narrativas e a cada ato que se passava me sentia assombrado pelo nível apurado com que tratava o curso da sua história. O forte rigor que exerce sobre a forma de seu filme merece elogios.

A complexidade narrativa, que abre inúmeras histórias numa única principal, parece oferecer obstáculos para a compreensão da película, contudo, me surpreende que, embora indiscutivelmente hermética, a história finaliza com uma clareza ímpar, e mesmo o desenrolar dos fatos e as inúmeras reviravoltas ocorridas, proporcionadas pela incrível e persuasiva Ana Wagener, que interpreta a falsa advogada de defesa, tornam a beleza do filme ainda maior, conferindo suspense, agilidade a ambição no ponto exato. Ainda que o espectador se perca num determinado momento, ele não se demora a encontrar-se, pois não há ponto sem nó, e quando nos reencontramos após minutos de incompreensão, o prazer é ainda mais catártico. A fragmentação narrativa conclui unidade fílmica no todo. 

É enfim a partir da inteligência criativa que devemos julgar o valor deste filme, sobretudo tendo em vista o estilo dramático que propõe como forma. Há um “quê” de soberba ao fim do longa-metragem que é totalmente justificável, afinal, nos é entregue uma peça de alto nível e o cineasta parece, com a cena final, se colocar num pedestal ao tirar um coelho da cartola. Un Contratiempo é uma película absolutamente completa, escrita com firmeza e dirigida com rigor. Uma aula do gênero suspense, ensinando como produzir subtramas como parte compositiva do todo, escapando de um roteiro facilitado e finalizando com plenitude única.

Um Contratempo (Un Contratiempo, Espanha, 2016)
Direção: Oriol Paulo
Roteiro: Oriol Paulo
Elenco: Mario Casas, Ana Wagener, José Coronado, Bárbara Lennie, Francesc Orella, Paco Tous, David Selvas, Iñigo Gastesi, San Yélamos, Manel Dueso, Blanca Martínez
Duração: 106 min. 

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