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Crítica | Um e Outro, A Nova Califórnia e O Moleque, de Lima Barreto

Três situações do cotidiano.

por Luiz Santiago
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Neste pequeno compilado, trago críticas para três contos de um de nossos grandes escritores nacionais, o historicamente subestimado Lima Barreto. São obras escritas entre os anos 1910 e 1920, publicadas também durante esse período. Para saber as datas com precisão, basta olhar as fichas técnicas de cada conto e ler as críticas para mais informações. E aí, você conhece esses contos? De qual deles gosta mais? Deixe seus comentários ao final da postagem!

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A Nova Califórnia

O título A Nova Califórnia é uma referência cínica de Lima Barreto à Corrida do Ouro na Califórnia (1848 – 1855). No contexto histórico, milhares de pessoas migraram para aquelas terras e fizeram de tudo para conseguir ao menos alguns gramas de ouro, com o objetivo de melhorarem para sempre suas vidas. A febre pela busca do ouro gerou toda sorte de problemas sociais; desentendimentos, criação e superpopulação de cidades (que depois se transformariam nas famosas ghost towns) e mortes, pelos mais diversos motivos. Em seu conto, Lima Barreto traz essa problemática para a realidade brasileira do início do século XX, imaginando como Tubiacanga — uma cidade pequena, de três mil habitantes — poderia ser abalada pela notícia de que todos poderiam conseguir ouro.

E o verbo é esse mesmo. “Conseguir”. Contudo, a forma pela qual esses indivíduos deveriam “conseguir” o ouro é que torna o enredo ainda mais macabro e interessante. Escrito no Rio de Janeiro, em 1910, mas publicado apenas em 1915, como extra da 1ª edição de Triste Fim de Policarpo Quaresma, A Nova Califórnia fala sobre a hipocrisia das pessoas e como elas podem ser manipuladas através do dinheiro.

Essa corrupção possível (e, em alguns casos, até muito fácil) das pessoas, faz com que elas cometam os sacrilégios que tanto criticam nos outros. A trama desse conto se desenvolve em torno de um renomado químico que mudou-se para a tranquila Tubiacanga a fim de fazer seus experimentos na mais garantida paz. Em dado momento, ele pede ao farmacêutico que, juntamente com outros dois homens, presencie a sua invenção e atestem em documento o que vieram: ele conseguiu fazer ouro! Mas a matéria-prima para essa maravilha era… ossos de defunto.

O rebuliço, a mortandade e a decadência que em tão pouco tempo essa informação causou na cidade é o véu que o conto retira. No fim das contas, apenas o bêbado, sempre tão criticado e odiado, é quem não participou do arrombamento dos sepulcros. E o mais triste e irônico de tudo é que o mitológico químico, a esta altura, já nem estava mais na cidade. Parece uma situação que eu conheço, de um alguém que prometeu mundos e fundos a um grupo de pessoas; treinou-as para descerem aos fossos da insanidade, e fugiu, deixando um rastro de destruição atrás de si.

A Nova Califórnia (Brasil, 1915)
Autor: Lima Barreto
12 páginas

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Um e Outro

Um e Outro foi escrito na casa da família de Lima Barreto — em Todos os Santos, Rio de Janeiro, em março de 1913 –, e publicado na parte extra da 1ª versão de Policarpo Quaresma, em 1915. A história demonstra como o autor era hábil em capturar o comportamento cotidiano de diversas pessoas, olhando para esses indivíduos com um olhar crítico, mas ao mesmo tempo humano e, não raramente, com uma pitada de humor. Aqui, conhecemos uma mulher dada ao amor. Ela nasceu em uma cabana, mas conseguiu, ao longo da vida, encontrar homens com bastante dinheiro; homens capazes de dar-lhe uma vida confortável. Na primeira parte da história, entramos em contato com a mentalidade de Lola, seu olhar para as criadas, a relação com a filha, com o ex-marido, o medo imenso de envelhecer e a crise existencial que tem ao pensar na morte.

É um desenvolvimento que nos prepara para um jogo social misturado com as muitas dificuldades dos relacionamentos. Algo que conhecemos tanto da vida real, quanto da literatura e do cinema de diversos lugares do mundo. Afinal, uma mulher que sustenta um amante com caros presentes não é nada novo, correto? Em Um e Outro, porém, Barreto cria uma personagem feminina inteiramente movida por aparências. Até o seu tesão estava ligado ao status, àquilo que o amante, um chofer que guiava um carro muito bonito (lembrando que o carro, nos anos 1910, era algo raro, um item de luxo aqui no Brasil), representa para sociedade, dirigindo um automóvel que ninguém na cidade sequer poderia entrar. O texto vira a chave da nossa percepção apenas no final, encaminhando-se para uma trilha bem diferente da que imaginávamos. Me lembrou até a literatura de um escritor que publicaria décadas depois, e que também tocaria nos mesmos assuntos, com a mesma veia irônica e crítica: Nelson Rodrigues.

Um e Outro (Brasil, 1915)
Autor: Lima Barreto
13 páginas

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O Moleque

Originalmente publicado na coletânea Histórias e Sonhos, de 1920, O Moleque faz o leitor pensar sobre as condições de vida das famílias pobres na periferia das grandes cidades; sobre a maneira como a maioria dessas famílias educam seus filhos para uma conduta social honesta; e sobre como as necessidades, em diferentes faixas etárias, podem mudar esse alinhamento moral-social dos indivíduos, colocando-os num caminho alheio à sua educação ou mesmo ao desejo de seus pais. O autor não desenvolve a sua história com longos parágrafos a respeito da delinquência juvenil, dos preconceitos históricos aos meninos e meninas de cor preta e como a situação social em que vivem podem forçá-los a algo socialmente reprovável.

O autor faz o leitor se aproximar do local através de um histórico de hábitos, ruas e nomes que permanecem e que mudam; da geografia peculiar dos morros, e de como de sua organização familiar dita a hierarquia da vizinhança. Casas construídas de diferentes formas, famílias pobres, mas com níveis diferentes de posses e condições de compra; coisas assim. O autor promove um interessante estudo do espaço, para depois focar na história de Dona Felismina e de seu filho Zeca.

Barreto expõe como esse menino sofria com o racismo, e como isso era abstraído como “mais uma coisa comum no bairro“, mostrando um enraizado (institucional) comportamento preconceituoso da sociedade, que passava desde muito cedo para as crianças, certamente repetindo palavras ofensivas que pais ou outros adultos diziam a homens e mulheres negras ao seu redor. No meio de tudo isso, uma fantasia de diabinho para o Carnaval se torna motivo de “desvio de conduta“. E o conto termina nos fazendo refletir sobre como Zeca conseguiu a fantasia, bem como em todo o ambiente desesperançado e sem nenhum tipo de compensação ou prazer que o cerca. Ele está constantemente trabalhando para ajudar a mãe. Não pode ir para a escola porque então não haveria ninguém para ajudá-la, levando e trazendo trouxas de roupas dos clientes.

Eu não gosto muito da organização geral da temática, aqui. O início do conto poderia ser desenvolvido num outro cenário. As duas partes, apesar de isoladamente serem muito boas, não combinam bem quando juntas em um mesmo contexto. Mas a mensagem a respeito do impacto social nas ações do indivíduo consegue ser passada da forma mais crua e tocante possível.

O Moleque (Brasil, 1920)
Autor: Lima Barreto
10 páginas

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