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Crítica | Um Instante de Amor

por Marcelo Sobrinho
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Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado.”

Clarice Lispector no conto Amor

O desejo feminino aprisionado pelas amarras de um casamento infeliz. O leitmotiv do novo filme da atriz, roteirista e diretora francesa Nicole Garcia já originou grandes obras literárias, cujos exemplos mais monumentais são Anna Karenina, de Liev Tolstói e Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Um Instante de Amor, baseado no romance homônimo de Milena Agus, é um dos filmes mais destacados do Festival Varilux de Cinema Francês de 2017. O longa-metragem, que esteve em competição pela Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2016, é um trabalho competente, cedendo a muitos convencionalismos em determinados momentos, mas cujo conteúdo consegue ainda trazer novo fôlego para o tema.

A história se passa na França dos anos 50, em uma sociedade tipicamente rural, onde Gabrielle (Marion Cotillard) é uma mulher doente, que opta por um casamento infeliz para não ser internada por tempo indeterminado em um sanatório. O marido escolhido é um pedreiro que trabalha na propriedade dos pais da moça e juntos iniciam um matrimônio fadado ao fracasso, com a consciência de ambos. A personagem de Marion Cotillard sofre de fortes dores renais. Mas o que choca todos em seu entorno é sua feminilidade indomável, seu desejo que se manifestara tão cedo e que está em total desacordo com o que se espera de uma mulher europeia da década de 50. A beleza da atriz francesa é ressaltada pelos planos cheios de erotismo de Nicole Garcia, que não ocultam o poder delicadamente lascivo do corpo feminino.

Delicadeza é mesmo o predicado que domina o filme de Garcia. Um Instante de Amor é essencialmente feminino. Dirigido, roteirizado e protagonizado por mulheres, que entregam à obra uma visão muito própria desse universo. A direção da francesa é bastante clássica, sem grandes ousadias, mas consegue entregar uma belíssima cena de sexo entre Gabrielle e o tenente André Sauvage (Louis Garrel), homem que ela conhece no hospital onde começa a tratar sua doença renal. Gabrielle concretiza seu desejo sufocado em uma cena nada gratuita. A trilha sonora, com realce especial à Barcarola de Tchaikovsky, é discreta e elegante e a fotografia de Christophe Beaucarne, igualmente charmosa. Mas o destaque do filme fica mesmo por conta da atuação intensa e amalgamada de Marion Cotillard, uma das grandes atrizes em atividade. Se o roteiro e a direção de Nicole Garcia são bons, mas não chegam a brilhar, a atuação da atriz francesa alavanca Um Instante de Amor a outro nível.

Acho interessantíssima a ideia de utilizar a doença renal de Gabrielle como metáfora para seu desejo encarcerado. O filme resgata um conceito muito bem definido pela medicina grega – o de que órgãos específicos adoeciam como causa e consequência de determinadas emoções em desequilíbrio. Dessa forma, os cálculos renais da protagonista estariam intimamente ligados ao sentimento de medo, natural para uma mulher da década de 50, que vivia o conflito de ter que domar o feminino dentro de si mesma. Não é coincidência que as dores de Gabrielle abrandam quando ela conhece André Sauvage. Podemos pensar essa ideia em ligação com a própria histeria – sintomas físicos, classicamente descritos em mulheres do século XIX, que foram atribuídos inicialmente ao útero (histerus, em grego). Trazer à tona essa ideia de patologização do feminino, que ainda sobrevive, ainda que de forma velada, é algo que merece destaque e que distancia Um Instante de Amor de qualquer abordagem óbvia do tema.

Embora o filme de Garcia se dedique ao feminino, outro ponto que também muito me agrada é o tratamento complexo e generoso que ele dá aos personagens masculinos. Não há homens estereotipados como vilões no longa-metragem. O próprio marido de Gabrielle – José (Alex Brendemühl) – revela uma sensibilidade às questões mais prementes de sua esposa que surpreende o público. Mesmo inserido no contexto social que asfixiava as mulheres de seu tempo e que praticamente obrigou a personagem de Cotillard a se casar, o antigo pedreiro revela uma abnegação extraordinária. Se há uma fala que marca o filme, ela pertence a José: “Eu queria que você vivesse”. Quem assistir ao filme entenderá seu contexto. Comovente e, ao mesmo tempo, corajosa a construção do personagem ao evitar uma visão ressentida sobre o masculino. Talvez seja exatamente essa a característica que dá tanto frescor a Um Instante de Amor – delicado quando trata do feminino e honesto na construção do masculino.

O filme, que está sendo exibido em todo o país por ocasião do Festival Varilux de Cinema Francês de 2017, não chega a ser uma obra-prima, pois lhe falta dar um passo adiante. Seu desenvolvimento se arrasta um pouco, mas há momentos de grande beleza e qualidades inequívocas de roteiro, de direção e principalmente de seu elenco. Ao contrário de adaptações insossas de obras semelhantes, como a de Anna Karenina, realizada em 2013 por Joe Wright, este filme de Nicole Garcia coloca na grande tela uma história com nuances suficientes para ser digna de seu tema. Ele oferece a Gabrielle, se não a mesma grandiosidade e importância da personagem de Tolstói, ao menos um instante pleno como mulher.

Um Instante de Amor (Mal de Pierres) – França, 2016
Direção: Nicole Garcia
Roteiro: Nicole Garcia, Milena Agus
Elenco: Marion Cotillard, Alex Brendemühl, Louis Garrel, Brigitte Roüan, Victoire Du Bois, Victor Quilichini, Aloïse Sauvage, Inès Grunenwald, Caroline Megglé, Gwengoline Fiquet
Duração: 120 minutos

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