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Crítica | Um Lindo Dia na Vizinhança

por Ritter Fan
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Com tantos filmes, séries e livros lidando com situações e pessoas desagradáveis, chega a ser uma surpresa enorme encontrar uma obra como Um Lindo Dia na Vizinhança que, apesar de parecer ter sua mira voltada para o famoso Mister Rogers, apresentador americano de um programa infantil que foi ao ar de 1968 a 2001, não o tem exatamente como foco. Diferente de cinebiografias comuns, Fred Rogers, vivido por Tom Hanks, tem sua vida analisada de maneira reflexa, já que é o amargo e cínico repórter investigativo Lloyd Vogel (Matthew Rhys) o “dono” do ponto-de-vista dominante, com Rogers sendo estudado a partir dele, como um tubo de ensaio de controle em uma experiência científica, o que afasta a abordagem idólatra simples que é comum encontrar em propostas como essa.

O roteiro de Micah Fitzerman-Blue e Noah Harpster baseou-se no artigo escrito por Tom Junod em 1998 para a revista Esquire e usa a estrutura do articulista como base para a narrativa. O que vemos, portanto, é como a vida de Junod, rebatizado de Lloyd Vogel, é afetada a partir de suas entrevistas com Rogers para escrever um artigo elogioso curto por encomenda de sua editora. Pai recente e casado com Andrea (Susan Kelechi Watson), Lloyd é a encarnação da tristeza, um homem de olhar cabisbaixo e ombros arriados que não consegue perdoar seu pai, Jerry (Chris Cooper), por ter abandonado sua mãe doente e que volta para sua vida durante o terceiro casamento de sua irmã, Lorraine (Tammy Blanchard).

Lloyd é um personagem identificável como real e que qualquer um pode estabelecer conexões – por mais desagradável que ele seja – quase que imediatamente por provavelmente reconhecer traços de si próprio ali. Isso é particularmente importante, com a performance de Rhys capturando muito bem essa tristeza inafastável, pois o que efetivamente importa é o choque que isso gera quando Lloyd é colocado “em oposição” à natureza quase que completamente fabulesca de Mister Rogers que, conforme o filme deixa transparecer, não é um personagem criado por Fred McFeely Rogers, falecido em 2003, para comandar seu programa infantil. Rogers é Rogers, sem máscaras, sem faz de conta, por mais improvável que isso possa ser.

E essa improbabilidade é só amplificada pela forma como a narrativa é iniciada e depois entrecortada por cenas de Rogers em seu programa e com panorâmicas das cidades saindo da cidadezinha-cenário, com a diretora Marielle Heller filmando essas sequências com granulação no filme, além de razão de aspecto 4:3, que é a da televisão clássica. Com isso, Rogers não chega sequer a ser um personagem no sentido cinematográfico da palavra, já que ele não ganha um arco narrativo ou qualquer tipo de desenvolvimento e isso sem dúvida é um risco narrativo. Entretanto, Um Lindo Dia na Vizinhança não pretende ser uma biografia padrão do apresentador, como afirmei, sendo até mesmo possível afirmar que, se esta é mesmo uma cinebiografia, então ela o é de Junod, não de Rogers.

Tenho para mim, porém, que há uma interconexão que torna uma coisa inseparável da outra. De um lado, temos um Fred Rogers já maduro, já vivido e já sendo o que ele é e o que parece que ele “sempre” foi. Ele é a constante, o tubo de ensaio de controle como mencionei mais acima. Quem tem um arco narrativo completo é Lloyd, que aprende quem ele é, quem foi seu pai e quem ele pretende ser a partir de seu contato terapêutico com Rogers. Lloyd encontra um homem que o mundo cínico e frio simplesmente nos diz todos os dias que não existe ou que não poderia existir. Rogers é o que chamamos de clichê, de arquétipo, de agregador de qualidades unilaterais que tornam o personagem raso como um pires.

Mas será que o roteiro o escreveu assim ou será que nosso cinismo, nossa casca não nos permite acreditar que sim, bondade pura e constante é possível. Vejam: não falo aqui de atos de bondade. Isso, se procurarmos, encontraremos corriqueiramente, ainda que a imprensa, no geral, os soterre debaixo de toneladas de atos de maldade. O que falo é de uma vida de bondade, de genuína tentativa de fazer o melhor possível para ajudar os outros. Se Rogers foi mesmo assim, bem… comecem lendo o artigo de Junod (aqui) para terem uma ideia dessa pessoa que parece sim ser fruto de um roteiro mal escrito. E tentem esquecer o tipo de celebridade maior que a vida de hoje em dia, daquelas que precisam voar em aviões particulares, viver de renovados 15 minutos de fama na base de um escândalo por mês e que se entregam dia sim, dia não, aos piores vícios. Não é dessa “celebridade” que o filme fala.

Heller não esconde seu enquadramento do filme como uma fábula, mas a diretora vai além graças ao roteiro inteligente que ela teve para trabalhar. As interações são humanas, verdadeiras, com Hanks como sempre extraordinário no papel, mas com Rhys correndo atrás em uma performance que, diria, é ainda mais desafiadora, porque seu personagem não é exatamente agradável. Além disso, o texto vai além da moral da história mais saliente, que poderia ser resumido com a força do perdão ou algo do gênero. Há mais ali, mas – e aí é que vem a raridade – sem pregações, sem textos expositivos explicando o que está acontecendo e o porquê de isso ser errado ou certo.

Mister Rogers passa sua filosofia de vida e ela é fundamentalmente simples: aceite as pessoas como elas são. Essa singela frase fala mais contra o preconceito do que muita retórica politicamente correta que vemos inserida em todo tipo de filme até perder seu significado original. É tão simples, tão óbvio, que a mensagem pode passar despercebida. No entanto, do lado de Lloyd, vemos um casamento em que sua esposa largou o emprego para cuidar do filho, o que abre espaço para um excelente subtexto sobre a igualdade de gêneros, sobre o machismo e novamente sem que o filme pare para explicar os conceitos. Esse é o tipo de roteiro e o tipo de direção que começam uma conversa de igual para igual com os espectadores, sem rotulagem, sem ser condescendente e sem tratá-los como burros que precisam aprender uma lição.

Um Lindo Dia na Vizinhança é um conto de fadas sim, mas um conto de fadas verdadeiro em grande parte que traz uma abordagem refrescante para assuntos atuais e importantes que estão presentes em nosso dia-a-dia e, na mesma toada, lembra-nos de que ser uma pessoa boa é uma escolha de vida, não momentos isolados capturados em câmera e distribuídos pelas redes sociais. Definitivamente um filme para sair sorrindo, mas pensativo da sala de cinema.

  • Crítica originalmente publicada em 15 de dezembro de 2019 como parte da cobertura do Festival do Rio.

Um Lindo Dia na Vizinhança (A Beautiful Day in the Neighborhood, EUA/China – 2019)
Direção: Marielle Heller
Roteiro: Micah Fitzerman-Blue, Noah Harpster (inspirado em artigo de Tom Junod)
Elenco: Tom Hanks, Matthew Rhys, Chris Cooper, Susan Kelechi Watson, Maryann Plunkett, Enrico Colantoni, Wendy Makkena, Tammy Blanchard, Noah Harpster, Carmen Cusack, Kelley Davis, Christine Lahti, Maddie Corman
Duração: 109 min.

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