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Crítica | Um Lugar Tranquilo no Campo

por Luiz Santiago
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Existe um fascínio indescritível em relação à figura de um artista atormentado por alguma coisa. Obras dessa categoria costumam mesclar com intensa dose de confusão (e isso não necessariamente quer dizer algo negativo) o olhar do indivíduo atormentado com a realidade que cobra dele alguma coisa. Esse tratamento pode ser dado de forma secular, com um tormento ligado à dubiedade perceptiva — pessoal e social — e flertando com o suspense, como Antonioni fez em Blow-Up; ou de forma mais “espiritual”, com um tormento ligado à condução do indivíduo para um mundo cada vez mais sombrio, que o afeta e tende a destruí-lo impiedosamente. Este último caso nós vemos de maneira primorosa em A Hora do Lobo, de Bergman, e aqui neste giallo de Elio Petri intitulado Um Lugar Tranquilo no Campo (1968).

Abraçando novas tendências narrativas e visuais na Europa do final dos anos 1960, Petri realiza neste terror inquietante a descida de um homem aos infernos da perturbação mental, adotando dois núcleos narrativos que acabam por se fundir em determinado ponto do enredo, dando-nos a sensação de causa-e-consequência, algo nada estranho a uma obra de abordagem sobrenatural. No centro desse redemoinho temos o pintor Leonardo (Franco Nero) e sua mulher Flavia (Vanessa Redgrave), que cuida das finanças do marido. Como o texto não está nem um pouco preocupado em dar sólido suporte da realidade para o personagem de Franco Nero — que está soberbo no papel –, o espectador, que vê o mundo através dos olhos dele, também terá muitas dúvidas sobre o estágio de seu relacionamento e até mesmo de suas emoções. Essa confusão mental é a premissa perfeita para introduzir no filme o elemento perturbador, ao qual, em pouco tempo, se juntará a aura sobrenatural.

Composta por Ennio Morricone, a macabra trilha sonora do longa faz as vezes de preparação do terreno para o horror. Nossa introdução a este Universo acontece através de um pesadelo (sintomático e preciso) e já aí o diretor nos entrega todas as chaves para o drama que irá se desenrolar, criando círculos comportamentais para Leonardo que, como disse antes, terá a aparência de causa-e-consequência. Ele já está perturbado no início da fita e o que o roteiro faz é nos colocar como testemunhas da piora desses personagem, com seus sonhos meio surrealistas, violentos e sexualizados. Aliás, a linha entre violência e libido é bastante forte aqui, com a fotografia destacando o uso do vermelho nos dois significados que atingem o protagonista (desejo e violência) e fazendo-o se perder nesse labirinto que só cresce a partir do momento em que ele se apaixona por uma casa no campo, para onde se retira a fim de “poder pintar em paz” e onde encontrará o seu definitivo caminho de perdição.

Embora não goste muito do afastamento de Vanessa Redgrave da obra e veja alguns diálogos investigativos de Leonardo como desnecessários — pelo didatismo –, não consigo olhar para Um Lugar Tranquilo no Campo como um filme menos que excelente. A direção é absolutamente inquieta, com a câmera protagonizando os mais diversos movimentos, ângulos e planos improváveis; e com a excelente montagem de Ruggero Mastroianni alterando constantemente a nossa percepção de tempo e espaço, além de criar o jogo de realidade e alucinação, um jogo onde o gozo e a dor se unem para fazer com que o artista atormentado produza e ao mesmo tempo, definhe. O mal, no entanto, não tem aquele caráter absoluto e totalmente demoníaco, totalmente mal, como nos clichês do gênero. Ao menos nesse aspecto, Um Lugar Tranquilo se assemelha consideravelmente a Julieta dos Espíritos, de Fellini, especialmente pela forma como os fantasmas são inseridos na narrativa, e aqui, esse mundo sobrenatural estar aliado à desordem mental do pintor, cujo olhar para o mundo também contamina o nosso.

Insanidade, genialidade e versões da realidade são as pedras angulares desta obra. Não se trata de um filme fácil ou agradável de se ver. As constantes idas e vindas da alucinação para o mundo real podem confundir os mais desatentos, e o status final do personagem burla a expectativa do público ao adicionar, com grande cinismo, uma pincelada social com ares de crítica e deboche ao que restou do homem. Embora seja incapaz de estar no convívio social, esta mesma sociedade não se envergonha em admirar as obras de arte do homem perturbado, ou mesmo lucrar com elas. Os atos e a frase final de Flavia dão conta desse estado das coisas. De fato, é quase invejável a posição dos alienados em seus “lugares tranquilos no campo”, aparentemente felizes, trabalhando, dando lucro para outrem, sem se importar com mais nada. Isso não quer dizer, todavia, que esses indivíduos não possuem os seus próprios demônios. Inseridos ou afastados do convívio social; alienados ou engajados, os humanos estão sempre diante de uma sobra. É só questão de tempo até eles serem pegos.

Um Lugar Tranquilo no Campo (Un tranquillo posto di campagna / A Quiet Place in the Country) — Itália, França, 1968
Direção: Elio Petri
Roteiro: Elio Petri, Luciano Vincenzoni (baseado na obra de Oliver Onions e em conceito de Elio Petri e Tonino Guerra)
Elenco: Franco Nero, Vanessa Redgrave, Georges Géret, Gabriella Boccardo, Madeleine Damien, Valerio Ruggeri, Rita Calderoni, Renato Menegotto, Arnaldo Momo
Duração: 106 min.

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