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Crítica | Um Só Pecado

por Luiz Santiago
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estrelas 4,5

Quando filmou Um Só Pecado, François Truffaut passava por uma grande crise em seu casamento, que chegaria ao fim pouco tempo depois dele ter concluído o filme.

Escrevendo o roteiro ao lado de Jean-Louis Richard, com quem voltaria a trabalhar nos longas Fahrenheit 451 (1966), A Noiva Estava de Preto (1968) e A Noite Americana (1973), Truffaut fez em Um Só Pecado uma pequena crônica cinematográfica de sua própria vida, filmando, inclusive, o episódio de traição que ele mesmo protagonizara saindo com uma aeromoça, o grande pivô do seu divórcio em 1965.

A história de Um Só Pecado nos traz o famoso editor e escritor Pierre Lachenay (alter-ego de Truffaut) que, após 15 anos de casamento e uma vida tremendamente agitada, cede à tentação de ter um affair com uma aeromoça durante uma viagem a Lisboa, onde ministraria uma palestra sobre Honoré de Balzac (o autor favorito de Truffaut, também citado em Os Incompreendidos).

A partir do momento em que o adultério acontece, o filme passa a estudar o personagem principal e sua amante, mostrando os prazeres e percalços da relação proibida. Aí vemos problematizado o cotidiano de Pierre, que além de uma imagem pública respeitável para manter, tenta a todo custo fazer parecer que nada havia mudado, que a esposa estava errada e que ele era uma vítima incompreendida no seio dos acontecimentos. É interessante pensarmos que, ao filmar um episódio de sua própria vida, Truffaut não tenta em nenhum momento justificar os atos de Pierre ou demonizá-los. A traição estava lá como um ponto falho da vida do personagem assim como outros pontos falhos e outros pontos positivos, pelos quais ele acabaria recebendo os louros ou pagando a dívida mais cedo ou mais tarde.

Paralelo à trama dos amantes, temos o universo familiar de Pierre explorado (o de sua amante pouco aparece), sempre em contexto com alguma coisa. O roteiro nos dá uma visão do matrimônio um pouco parecida com aquela de Douglas Sirk em Chamas que Não se Apagam (1956), onde uma das partes percebe que as obrigações cotidianas, os filhos, os amigos, etc. são uma espécie de empecilho para o casal manter-se conectado, tenham em pauta algo que saia da agenda de trabalho, dos afazeres de casa e do bem de seus rebentos. Em certo ponto, observamos Franca chamar Pierre para um final de semana no campo, longe da filha. O esposo “concorda discordando”, pois sua atenção não era mais manter vivo o casamento. As semelhanças com a obra de Sirk acabam aqui, pois, mesmo tendo consciência da importância de sua imagem social, Pierre se entrega sem muitos freios ao amor proibido e concorda de pronto em colocar um ponto final na relação assim que o assunto vem à tona.

Já neste momento da projeção o espectador não tem as palavras certas para classificar a agilidade e extremo dinamismo da direção de Truffaut, uma tarefa completada pela precisa montagem de Claudine Bouché (a mesma de Atirem no Pianista). Desde a abertura, percebemos que os planos muito curtos, os movimentos rápidos de câmera para intensificação dramática no movimento externo do filme (sempre em contraponto com a música) e a falsa simplicidade do roteiro tornam a projeção tecnicamente elegante, agradável e sem excessos técnicos ou de conteúdo. As visitas de amigos, os pequenos encontros, os momentos de intimidade nada vulgar entre os amantes, tudo possui um exato momento para aparecer e tem uma duração também exata, algumas vezes sendo usados como trampolim para o fechamento do cerco em torno de Pierre (minha sequência favorita é a estadia dele em Reims) e muitas vezes inseridos na trama para ampliar as motivações das personagens femininas.

Já na reta final, percebemos que a câmera se afasta de Nicole, que por sua vez se afasta de Pierre, tornando-se motivo de vergonha, peso e arrependimento para ele. A bela atriz Françoise Dorléac (irmã de Catherine Deneuve, que morreu aos 25 anos em um acidente de carro) faz um ótimo trabalho na construção sutil e depois mais dramática e então odiosa da aeromoça e amante. Acompanhada em qualidade pelo experiente Jean Desailly no papel de Pierre, a atriz ajuda a marcar os pontos emotivos do longa (uma vez que Desailly vive um personagem propositalmente pouco expressivo), seguida por Nelly Benedetti, no papel de Franca, que acaba colocando um fim perfeito à história com um sorriso de Mona Lisa no rosto.

Mesmo bastante negligenciado por uma parte do público (até por alguns que admiram o cinema de Truffaut), Um Só Pecado, ao contrário do que se possa pensar, não é o típico filme ame ou odeie. A obra tem uma constituição técnica excelente, um ótimo elenco e cumpre bem o que promete. A questão “negativa”, claro, está mais na recepção que cada espectador terá do tratamento do personagem principal e do ‘acompanhamento cotidiano’ de sua vida, este ponto, com um quê macabro de realismo, pois essa parte do roteiro foi estruturada em recortes de jornais que Truffaut colecionava e que davam conta de casos clássicos e trágicos de como certos casais lidaram com a traição.

O filme vem sendo redescoberto após lançamentos especiais e em alta definição no mercado de home video e de alguma forma tem convencido alguns cinéfilos de que se trata de uma notável obra de Truffat. Talvez seja preciso apenas dar uma nova chance a ela. Não há pecado nenhum nisso.

Um Só Pecado (La peau douce) – França, 1964
Direção: François Truffaut
Roteiro: François Truffaut, Jean-Louis Richard
Elenco: Jean Desailly, Françoise Dorléac, Nelly Benedetti, Daniel Ceccaldi, Laurence Badie, Philippe Dumat, Paule Emanuele, Maurice Garrel, Sabine Haudepin, Dominique Lacarrière, Jean Lanier, Pierre Risch
Duração: 112 min.

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