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Crítica | Uma Garota de Muita Sorte

Substância que faz de tudo para não ser sufocada pela forma.

por Ritter Fan
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Uma Garota de Muita Sorte – coisa rara um título brasileiro manter a ironia do original – tem o nobilíssimo objetivo principal de exortar as vítimas de violência sexual a compartilharem suas tristes, trágicas, mas infelizmente muito comum experiências de vida, com Jessica Knoll, autora do romance original de 2015 e também roteirista do longa, sendo uma delas, apesar de ela própria ter inicialmente publicado sua obra afirmando ser ficcional e não baseada no que efetivamente aconteceu com ela, algo que ela escolheu revelar algum tempo depois. É, de sua própria maneira, um “filme companheiro” de Bela Vingança, mas que, infelizmente, tropeça algumas vezes na maneira como transmite sua mensagem.

Mila Kunis tem, talvez, a melhor performance de sua carreira ao viver Tiffani “Ani” Fanelli, uma jornalista com uma vida aparentemente perfeita: ela é linda, sofisticada, com um emprego dos sonhos em uma revista voltada para o público feminino e um belo noivo de família tradicional endinheirada de Nova York. Mas essa pessoa que ela é, conforme vamos descobrindo primeiro por meio de uma narração em off dela própria e, em seguida, por flashbacks para seu passado traumático na época de escola (em que a personagem, com 14 ou 15 anos, é vivida pela igualmente ótima Chiara Aurelia), uma espécie de reinvenção do que ela um dia foi, reinvenção essa que tem como objetivo principal enterrar esse passado para permitir que ela viva sua vida distante do trauma ou, talvez melhor dizendo, esquecendo-o, glosando-o completamente como se nada tivesse acontecido.

Essa “crise de identidade” da protagonista é muito interessante e é o que permite que Kunis brilhe praticamente o tempo todo em uma performance pendular que ora nos permite ver quem ela foi e ora a amálgama do que ela se tornou como vítima/sobrevivente de violência sexual – estupro, especificamente – que carrega estresse pós-traumático em seu cotidiano apesar do esforço em reservá-lo a um espaço cada vez menor em sua mente. E não quero dizer aqui que a personagem muda de personalidade completamente, como em um transtorno bipolar, mas sim algo muito mais sutil e consciente, logo abaixo da superfície da vida glamorosa que ela faz questão de viver nesse seu processo diário de reinvenção, o que inclui deixar em evidência o caríssimo, mas antigo anel de noivado que pertenceu à avó de Luke Harrison (Finn Wittrock) seu noivo e seu uso secreto da sala de sua editora Lolo Vincent (Jennifer Beals) para parecer mais importante do que ela é na estrutura hierárquica de onde trabalha.

A forma como a protagonista lida com seu dia-a-dia e como esse dia-a-dia contrasta com seu passado, algo que vemos, dentre outras maneiras, pelos vários nomes e apelidos que ela tem e como ela adolescente e ela adulta são muito diferentes fisicamente são os fios condutores de valor de Uma Garota de Muita Sorte que o roteiro de Knoll sabe construir muito bem e que a direção de Mike Barker conduz consistentemente, mas somente quando não está preocupado em fazer de seu filme um thriller de mistério. E é nesse ponto que chegamos no problema principal do longa, ou seja, ele transforma o que poderia ser um drama poderoso que lida com assunto mais do que relevante em uma narrativa que vai aos poucos revelando segredos indizíveis quando um documentário sobre um tiroteio na escola da protagonista ressurge na vida dela adulta, prometendo bagunçar a vida que escolheu viver.

O assunto central, a violência contra a mulher e o quanto ela é corriqueira e, mais ainda, o quanto ela é um trauma silencioso e privado, o que disfarça suas dimensões, permitindo que alguns até hoje afirmem que são problemas “isolados”, não deveria precisar de chamarizes baratos como o que o roteiro de Knoll estabelece ao entregar os detalhes do passado de Fanelli de pouquinho em pouquinho e, mais ainda, deixando o espectador coçando a cabeça no que se refere ao mencionado tiroteio. Voltando à Bela Vingança, que mencionei no início, lá o assunto ganha uma abordagem que até pode ser considerada didática, mas que trabalha o tema usando artifícios construídos organicamente dentro da estrutura narrativa. Em Uma Garota de Muita Sorte, há uma tentativa de se seguir por esse caminho, mas ela acaba se sobrepondo ao drama corrente da protagonista.

E isso é maximizado pela maneira razoavelmente gráfica com que o estupro é abordado. Não sei se eu chegaria a dizer que é uma escolha sensacionalista, pois tenho para mim que o horror didático do momento pode ser relevante como instrumento de ensino e conscientização, mas fico pensando se a mensagem não é truncada, de certa forma afirmando que o estupro é sempre físico dessa maneira e, mais ainda, sempre exige um “não” bem claro da vítima, como chega a ser afirmado umas duas vezes ao longo da projeção. Além disso, o filme padece do que eu chamo de Síndrome O Retorno do Rei dos Múltiplos Finais, em que a roteirista e o diretor precisam enfileirar epílogos para dar conta – também de maneira bem expositiva – de cada linha narrativa.

Uma Garota de Muita Sorte, mesmo com seus problemas, acaba transmitindo sua mensagem, algo em que é ajudado por um roteiro que não deixa margens para qualquer dúvida, e Mila Kunis e Chiara Aurelia, vivendo as duas versões da protagonista, acertam em cheio em seus respectivos trabalhos dramáticos, o que, somado ao tema em si, acaba elevando a obra a um patamar mais elevado do que a forma como tudo é executado realmente merecia. Há substância no longa que, mesmo por vezes sendo sufocada por sua forma, acaba aparecendo vezes suficientes para fazer valer o investimento de tempo.

Uma Garota de Muita Sorte (Luckiest Girl Alive – EUA, 07 de outubro de 2022)
Direção: Mike Barker
Roteiro: Jessica Knoll (baseado em seu romance)
Elenco: Mila Kunis, Chiara Aurelia, Finn Wittrock, Scoot McNairy, Justine Lupe, Thomas Barbusca, Alex Barone, Carson MacCormac, Dalmar Abuzeid, Isaac Kragten, Gage Munroe, Jennifer Beals, Connie Britton, Nicole Huff, Alexandra Beaton
Duração: 113 min.

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