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Crítica | Uma Mulher é Uma Mulher

Godard confronta a noção de unidade enquanto Anna Karina exala graciosidade.

por César Barzine
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Lançado logo em seguida ao furor de Acossado, Uma Mulher é Uma Mulher não possui a mesma relevância que o primeiro longa de Godard, mas potencializa ao extremo o seu grau de experimentalismo, criando uma verdadeira “surra” de pequenos artifícios nesta curta obra. Ao contrário de Acossado, que partia de convenções do cinema clássico a serem desconstruídas por elementos dispersos, os maneirismos de Uma Mulher é Uma Mulher trabalham de forma onipresente, sem intervalos dentro de seu conjunto geral. O experimentalismo em torno do filme simplesmente nunca para, não há um segundo de alívio para o espectador respirar e se manter mais próximo do convencional. Godard, com grande entusiasmo, produziu uma verdadeira máquina de estímulos criativos.

Um dos pontos centrais do longa é que tudo isso é carregado de modo gracioso e sereno, apesar desta máquina ser ininterrupta e, portanto, pesada devido a extrema presença autoral do diretor, fazendo com que esse peso sempre se deixe caminhar por uma leveza. Essa sensação de leveza se dá graças à presença mágica de Anna Karina, ao humor de alguns diálogos e ao jeito brincalhão de Godard. E praticamente o filme inteiro é isso: uma brincadeira. Nada além desse ponto. Godard não se leva a sério e não possui o menor medo disso. Ele conduz o filme do mesmo modo que um adolescente conduz um vídeo no YouTube. Condução essa que se dá por cortes rápidos, acréscimo de texto na tela, trilha sonora abrupta, uma decupagem agitada e, acima de tudo, a jovialidade imprimida a cada segundo, com personagens, diálogos e situações sem a menor seriedade.

Simplesmente não há compromisso com nada. Não há compromisso com a posição de cineasta, pois ao invés de organizar a mise-en-scène, Godard apenas a atrapalha; da mesma forma que também não existe compromisso com a noção convencional de unidade, pois não há espaço para ela nessa sucessão de planos e cenas dada a falta de continuidade. Uma coisa não dá sequência a outra. Tudo é completamente isolado, cada passagem do filme é um universo em si próprio. Uma hora os personagens tratam de uma questão para logo depois tratarem de outra completamente diferente. Há um senso de efemeridade impresso a cada segundo que, apesar de se manter quase sempre concentrado em poucas locações, destila, do início ao fim, todo um dinamismo através da verborragia presente.

E todo esse tipo de dinamismo leva Uma Mulher é Uma Mulher a um paradoxo: a efemeridade que é articulada faz do filme algo contemplativo. Já que não existe, aqui, uma trama e nem uma progressão narrativa, também não há a necessidade do espectador acompanhar uma história da forma que se costura um evento a outro. Resta, ao espectador, contemplar todo aquele excesso de palavras e movimentos que surgem como se fosse uma metralhadora atirando. Desbravar e se deliciar com a beleza de cada instante da obra sem se importar com coerência, continuidade ou convenções é o único caminho a se trilhar na posição de espectador. Não é preciso buscar sentido neste conjunto de distintos mundos isolados, mas sim se deliciar com a beleza e o encanto que está no interior de cada um deles. Daí a contemplação em meio a um produto tão frenético.

Sendo assim, pode-se dizer que Uma Mulher é Uma Mulher é puro cinema moderno, pois toma cada partícula do filme como um fim em si mesmo, se entregando a um experimentalismo que não quer impor um significado monolítico e nem um tipo de apreciação linear que dependa de uma ordem gradual na narrativa. O filme, assim como descrevi na crítica de Bang Bang, faz do cinema o seu fetiche, e se entrega a um tipo de abordagem fragmentada em que o espectador deva apreciar cada instante como algo autônomo. O longa soa quase como um trabalho de colagem: pop, dividido, bagunçado e lúdico — o que nos faz pensar que boa parte dele foi improvisado. 

Trata-se de uma soma de aspectos que lembra até mesmo um clássico americano dos anos 30, A Levada da Breca. Nele, além da presença cativante de Katherine Hepburn — que entra em consonância com a presença também cativante de Anna Karina —, ocorre, de maneira semelhante, um universo lúdico que se renova a cada instante. Nesta obra, roteiro, montagem, direção e interpretações formulam um timing e uma espécie de narrativa que também operam a partir de micro-unidades que cativam o espectador em detrimento de uma macro-unidade mais homogênea. Ou seja, temos aqui o longa de Hawks mais experimental dentre as comédias screwball, e o longa de Godard como o mais screwball dentre os trabalhos da Nouvelle Vague. E ambos, cada um ao seu modo, se mantêm em intenso diálogo.

Sem dúvidas, Uma Mulher é Uma Mulher irá soar enfadonho para muitas pessoas. Temos aqui um filme muito menos digerível do que Acossado e que, com alguma certeza, causou certo espanto quando foi lançado — apesar de não ser tido como um marco do cinema e nem ter o prestígio de outras produções do diretor. Neste ponto, a escolha por uma duração tão enxuta (apenas 85 minutos) não poderia ter sido diferente, pois o filme sem dúvidas perderia seu fôlego se passasse disso, tamanho seja o nível de radicalismo aplicado. De resto, há de se destacar a direção de arte que soa bastante moderna, com cores suaves e enfáticas ao mesmo tempo; o humor solto que é aplicado, deixando o longa ainda mais descontraído; e, sem deixar de repetir, a figura mágica de Anna Karina. Seu rosto, seu corpo, suas falas e seu modo de ser dão luz a um filme que sem ela seria impossível.

Une femme est une femme (França, 1961)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Jean-Claude Brialy, Anna Karina, Jean-Paul Belmondo, Ernest Menzer, Gisèle Sandré, Dorothée Blanck, Marie Dubois, Jeanne Moreau, Nicole Paquin, Marion Sarraut, Henri Attal
Duração: 85 minutos.

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