Conheci a obra de Kazuo Ishiguro por meio de minha leitura, décadas depois de assistir a adaptação audiovisual, de Os Vestígios do Dia, romance que imediatamente me encantou, levando-me a tomar a decisão de ler toda a bibliografia do autor (focando nos romances), em ordem cronológica de lançamento. Uma Visão Pálida das Colinas, originalmente publicado na Inglaterra, em 1982, é o primeiro romance desse autor nascido em Nagasaki e radicado na Inglaterra desde seus cinco anos de idade, razão pela qual ele sempre escreveu diretamente em inglês, sendo inclusive laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2017. O romance, apenas um dos dois em que ele aborda o Japão e a respectiva noção de identidade japonesa na visão de um expatriado antes de partir para outras abordagens e gêneros, é uma impressionante estreia que encapsula com melancolia e por meio do uso de narradora não confiável a sensação de estar distante de sua terra natal e do desafio de viver uma segunda vida completamente diferente da primeira.
Etsuko, uma mulher japonesa de meia idade que mora sozinha na Inglaterra recebe a visita de Niki, sua filha mais velha nascida em seu país adotado, depois que Keiko, sua primogênita, se suicidara. Niki não havia ido ao enterro por nunca ter tido uma conexão muito grande com a irmã, e a visita à mãe é uma forma de emprestar um véu de cerimônia à perda. Essa premissa pesada e triste funciona como um gatilho emocional e narrativo para que Etsuko comece a relembrar de seu passado em Nagasaki poucos anos depois da Segunda Guerra Mundial e da devastação da cidade pela bomba atômica, quando, grávida de sua primeira filha, conhece Sachiko, uma mulher que se muda com sua filha pequena Mariko para uma humilde casa de madeira próxima do conjunto habitacional ocidentalizado em que vive. Apesar da natureza arredia e misteriosa de Sachiko e da distância que ela mesma guarda da filha, criada com tanta liberdade que é perfeitamente possível classificar como descaso, Etsuko estabelece uma conexão a jovem mãe tanto por provavelmente ver nela seu futuro em alguns meses quanto por se sentir solitária mesmo em meio a seus vizinhos usuais.
Ishiguro estabelece logo de imediato um perfeito equilíbrio entre um drama de fundo histórico e outro pessoal, fundindo os dois aspectos em um conjunto harmônico em que o que realmente importa é o quanto o silêncio, o quanto aquilo que não é dito fala alto e cria uma atmosfera quase labiríntica em que passado comenta o presente e vice-versa, com leves traços autobiográficos – digo leves pela tenra idade com que o autor foi levado para a Inglaterra – deixados claros pelas escolhas espaciais e temporais. Aqui, uma característica de Ishiguro que apenas um “punhado” de autores modernos têm e que ele não demoraria a aperfeiçoar já fica evidente: sua capacidade espantosa de usar as palavras com precisão cirúrgica. Nada realmente “sobra” em Uma Visão Pálida das Colinas, fazendo com que a leitura entre as linhas seja essencial, o que acaba transformando seu texto em algo que pode até mesmo ser interpretado como uma história de fantasmas, bem na tradição da fantasmagoria japonesa. Etsuko e Sachiko convergem em situações práticas do cotidiano, mas vão muito além disso, com esse relacionamento do passado dando a tônica e comentando o estado de espírito de Etsuko no presente da narrativa e em outro país.
Pode-se dizer que Ishiguro constrói sua narrativa com aura de mistério, mas não de um mistério tradicional, com revelações de fazer o queixo cair, mas sim algo muito mais natural que o leitor mais atento provavelmente perceberá muito cedo já que o autor realmente não esconde nada, só torna tudo mais explícito em dado momento já no final do livro. Percebe-se, nesse tocante, como um autor ainda inexperiente procura fisgar o leitor com um artifício que poderia parecer deslocado, mas que, ainda bem, não é o alicerce de sua história, mas sim, apenas, uma característica que empresta uma outra camada à vida isolada de Etsuko que se lembra de Sachiko como uma terapia, uma visão de sua própria vida projetada na de terceiros. No lado do que não é dito, vemos o cuidado com que Ishiguro aborda o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, ou seja, deixando o assunto como um pano de fundo distante e aterrador para uma narrativa que parece prosaica em comparação, mas que só torna tudo ainda mais excruciante e pesaroso, como que marcando uma violenta divisão temporal para seu país de origem, divisão essa que ele aborda com uma fina ironia.
Uma Visão Pálida das Colinas é um daqueles romances de estreia de se tirar o chapéu, uma obra que já nasce clássica e que estabelece com profundidade o estilo de um autor. Kazuo Ishiguro mostra em sua elegia ao Japão de outrora, um Japão que ele provavelmente nunca conheceu de forma consciente e direta, toda a sua habilidade com as palavras de seu país adotado, no que podemos chamar de sua primeira parte – de apenas duas – de seu reencontro e despedida do país onde nasceu.
Uma Visão Pálida das Colinas (A Pale View of Hills – Reino Unido, 1982)
Autoria: Kazuo Ishiguro
Editora original: Faber and Faber
Data original de publicação: fevereiro de 1982
Editora no Brasil: Companhia das Letras
Data de publicação no Brasil: 11 de março de 2025
Tradução: Jorio Dauster
Páginas: 200
