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Crítica | “United” – Marvin Gaye & Tammi Terrell

A primeira obra de uma parceria inesquecível!

por Kevin Rick
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Lançado em agosto de 1967, United não é apenas o primeiro encontro discográfico entre Marvin Gaye e Tammi Terrell, mas também um dos retratos mais delicados e ao mesmo tempo vibrantes da era de ouro da Motown. É curioso pensar que a parceria surgiu quase como um experimento: juntar a voz já consolidada de Marvin, que buscava novos rumos após sucessos como How Sweet It Is (To Be Loved by You), com o frescor de Tammi, jovem promessa que carregava uma expressividade rara, capaz de transitar entre doçura e intensidade com naturalidade. O resultado foi um álbum que, ainda que pensado dentro da fórmula pop-soul da gravadora, transborda emoção genuína e química artística, inaugurando uma das duplas mais memoráveis da música norte-americana.

Logo no início, United se apresenta com Ain’t No Mountain High Enough, hoje um hino incontornável da cultura pop, mas que na época surgia como um sopro de esperança em meio a um país mergulhado em tensões raciais e políticas. A canção, assinada por Ashford & Simpson, condensa em pouco mais de dois minutos a essência de toda a parceria: vozes que se entrelaçam não em disputa, mas em complementaridade, como se cada frase fosse a continuação natural da outra. O tema nasce pronto para o eterno: gradiente de dinâmica, entrada em camadas, estrofe que prepara um refrão incontornável e, acima de tudo, uma coreografia vocal perfeita. É impossível não perceber como Marvin cede espaço a Tammi, como Tammi devolve com entusiasmo cada linha, e como os arranjos — metais, cordas, bateria marcada — funcionam como cenário para esse diálogo. Se a Motown já tinha domínio sobre a manufatura de hits, aqui há algo além: a sensação de que estamos ouvindo duas pessoas acreditando naquilo que cantam.

Essa autenticidade se mantém em todo o disco, mesmo quando as escolhas de repertório poderiam parecer previsíveis. You Got What It Takes e If I Could Build My Whole World Around You transformam pequenas declarações em canções expansivas, com Tammi soando quase elétrica de alegria e Marvin alternando entre a suavidade e o vigor, numa espécie de coreografia vocal que nunca deixa de soar espontânea. A primeira acentua o flerte rítmico e deixa espaço para pequenos adornos de guitarra que sopram ar entre as frases. Já a segunda, é uma das joias do repertório da dupla: harmonia enxuta, refrão que cresce na medida e letra que traduz, em imagens simples, a fantasia totalizante do amor. O arranjo organiza os planos com elegância; baixo e bateria moldam o chão, metais desenham a curvatura do refrão, e as vozes flutuam por cima como dois instrumentos de sopro em contraponto.

Em Your Precious Love, a balada se arrasta no tempo certo, sem pressa, permitindo que as vozes respirem juntas, ecoando como promessas sussurradas ao pé do ouvido. Já em Somethin’ Stupid, cover que em outras mãos poderia soar apenas protocolar, a dupla injeta uma intimidade surpreendente, transformando um gesto musical simples em cumplicidade afetiva. O timing das entradas, o vibrato discreto de Tammi e a contenção de Marvin transformam a canção numa conversa.

O segundo lado do álbum aprofunda ainda mais a versatilidade da dupla. Two Can Have a Party é quase um exercício de leveza, puro sorriso em forma de soul, enquanto Little Ole Boy, Little Ole Girl aposta no tom brincalhão, um flerte musical que parece improvisado em estúdio. Mas é em If This World Were Mine que Marvin e Tammi alcançam uma transcendência particular. Escrita por Marvin, a faixa é ao mesmo tempo declaração de amor e exercício de vulnerabilidade, um mundo imaginário em que tudo pode ser entregue ao outro, um devaneio que se tornou um dos momentos mais emblemáticos da carreira de ambos. Há uma ternura quase dolorosa na forma como Tammi colore as notas e como Marvin as sustenta, e nesse instante percebemos como o disco não é apenas um produto da Motown, mas também um espaço de entrega pessoal. Minimalista no gesto, maximalista no sentimento: letra-desiderato (“se este mundo fosse meu, eu te daria…”), melodia que sobe sem pressa, harmonia que abre luz no refrão. Tornou-se um clássico à parte e não por acaso ganhou vida própria nas rádios e turnês. É o instante em que o intérprete vira compositor-enamorado e arranca o álbum do domínio exclusivo de Ashford & Simpson.

Mesmo as canções de menor impacto comercial, como Sad Wedding (narrativa de melodrama sem cair no excesso) ou Give a Little Love (um pequeno sermão alegre), carregam o charme da produção refinada e da interpretação sincera. E quando o álbum se encerra com Oh How I’d Miss You, paira no ar a sensação de despedida suave, como se fosse um adeus provisório, abrindo caminho para o que viria nos álbuns seguintes. É canção de pós-êxtase: depois do triunfo romântico, a consciência da perda possível. O arranjo dilata as sílabas longas e permite que as vozes se abracem. Há melancolia, mas também completude: ouvimos duas vozes que, em menos de quarenta minutos, criaram um universo próprio, um espaço onde a vulnerabilidade do amor podia ser celebrada sem medo.

O que torna United tão especial não é apenas a coleção de canções ou o fato de ter gerado sucessos duradouros, mas a capacidade de capturar o instante preciso em que Marvin Gaye e Tammi Terrell descobrem um ao outro artisticamente. Há discos que parecem construídos como produtos perfeitos, mas raramente conseguem transmitir a sensação de espontaneidade e de entrega que este transmite. É um trabalho que nasceu da interseção entre cálculo da indústria e verdade emocional, e talvez por isso tenha resistido ao tempo. Hoje, mais de meio século depois, ainda é possível sentir a mesma faísca que fez dessas vozes um encontro mágico.

Aumenta!: If This World Were Mine
Diminui!: 

United
Artista: Marvin Gaye & Tammi Terrell
País: EUA
Lançamento: 1967
Gravadora: Tamla, Motown
Estilo: Soul
Duração: 33 min.

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