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Crítica | Utopia e Barbárie

por Laisa Lima
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“Lugar ou estado ideal, de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos”. No dicionário, este é o significado de “utopia”. E este é o de “barbárie”: “Selvageria; qualidade ou condição do que é bárbaro, cruel ou desumano”. Apesar de quase antônimos, os dois termos são adequados para se referir a uma ideia, ideologia ou idealização cabível na mente dos partidários ou polarizados em relação a estas concepções. O elo entre eles, porém, mora na contraposição de um e outro, sendo simbióticos em suas existências. E, no documentário Utopia e Barbárie (Silvio Tendler, 2009), é explanada a ação e a reação, no quesito histórico, que embola estes substantivos os tornando consequências do exercício de ambos.  

Silvio Tendler coletou uma vasta gama de depoimentos para realizar seu próprio corte e colagem, com narração de Letícia Spiller, Chico Diaz e Amir Haddad, das tentativas de aplicação de visões utópicas na sociedade que culminaram em barbáries e ofereceram material suficiente para uma produção embasada unicamente em fatos. Guerra do Vietnã, da Argélia, Revolução Russa, Revolução Cubana, Ditadura militar, Segunda Guerra Mundial e outros controversos eventos serviram de mise en scène para um explicativo e gráfico discurso envolvendo todas as esferas possíveis e impossíveis de vítimas ou contribuintes de tais momentos. O longa-metragem de 2 horas apresenta, então, um tour por passagens e pessoas históricas influenciadoras de pensamentos propagados no século 21, mas concebidos no século passado. 

Citado na obra, um dos precursores do movimento da Nouvelle Vague, o cineasta Jean-Luc Godard, diz que o cinema retrata a verdade 24 vezes por segundo, que seria a velocidade dos fotogramas. A realidade por meio da arte, principalmente no quesito cinematográfico, alçou uma posição, demonstrada no filme, de condutora dos infortúnios terráqueos e dos pensamentos ligados a noção de certo ou errado de determinada época. Encouraçado Potemkin (Sergei Eisenstein, 1926) é um exemplo da servidão do poder de persuasão artístico utilizado, no caso, para a queda do Czar e ascensão do poder popular na Rússia em processo de revolução. E neste molde, Utopia e Barbárie, como um manifesto audiovisual, parte deste julgamento de que o melhor método de pesquisa vem da livre expressão do ser humano e constitui sua base na voz entregue aos que vivenciaram as ocorrências ou estudaram eficazmente sobre.

Em sua primeira parte, a película situa a exata localização de onde a história contada por Tendler começa: a Segunda Guerra Mundial. Posteriormente, a emulsão de declarações, posicionamentos e juízos se abreviam em sequências cronologicamente bem montadas de resultados desta tal utopia referida no título sendo posta em prática, seja no início do socialismo ou dos espectros políticos de direita e esquerda. Embora a distância geográfica e a aparente não ligação de motivações a partir da colocação e do seguimento de circunstâncias não concordantes como a Guerra da Argélia e a implantação do maoísmo, a conexão e a coexistência entre elas se dá pela visível busca da liberdade e sua seguinte opressão. A novidade do crescimento de noções inéditas como o feminismo e o existencialismo aparecem na obra como uma amedrontadora arma de rebelião, enquanto a oposição dispõe do armamento bélico e da tortura como um freio social.

Ao tentar ser democrático e exibir testemunhos de envolvidos de qualquer área que esteja conectada com as pauta adotadas, desde biólogos até personalidades como Cacá Diegues, Dilma Rousseff e o jornalista uruguaio Eduardo Galeano, além dos que presenciaram os acontecimento ali discutidos, Tendler pende para, além da óbvia crítica à administração do mundo atual, a um esquerdismo. Com uma mensagem que pode ser interpretada como uma culpabilização do capitalismo pelas atitudes cegas de indivíduos doutrinados por ele, o diretor segue em um ritmo de choque do espectador. O acervo de imagens reais de corpos em putrefação em campos de concentração e assassinatos à queima roupa só fortalece a indignação naturalmente sentida pela audiência, que frequentemente pode se perguntar o motivo de tanta crueldade. Todavia, o documentário consegue, seguindo de um confronto até o outro, elencar bem estas razões, e a “mão” de seu realizador é fundamental para a adesão à sua visão.

Utopia e Barbárie trata de muitos assuntos que necessitam de um tempo considerável para sua total assimilação. Ao se esforçar para gerar uma linha do tempo completa de forma lógica e que extraísse dos episódios passados na tela uma construção do viés de pensamento adotado por Silvio Tendler, é possível que uma confusão aconteça no espectador. Provavelmente, nem todos os marcos históricos serão compreendidos pelo público, mas o filme documental cumpre sua missão em revelar a brutalidade imposta pelo opositor na hora da busca de alguns pela mudança. A obra transmite, portanto, que o medo é o sustento da ignorância e que, mesmo ao longo dos anos, persiste no meio social, inclusive com a maior acessibilidade ao conhecimento e maior apelo à tolerância. Logo, os resquícios dos passos dados em falso na história não passaram, porém, a mutabilidade de seus vereditos são persistentes. 

Utopia e Barbárie (Utopia e Barbárie – Brasil, 2009)
Direção: Silvio Tendler
Roteiro: Silvio Tendler, Renata Ventura
Elenco: Letícia Spiller, Chico Diaz, Amir Haddad
Duração: 123 min.

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