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Crítica | Vale Abraão

por Luiz Santiago
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Vale Abraão é um épico sobre os valores tradicionais europeus, sobre as vicissitudes do amor e sobre um novo tipo de Madame Bovary, num estudo feminino e contemporâneo sobre o choque entre desejos, regras sociais e diferentes tipos de punição. Baseado no romance de Agustina Bessa-Luís, escrito e dirigido por Manoel de OliveiraVale Abraão se situa em um patamar complexo de conversas sobre valores ético-morais, sobre a passagem do tempo, sobre a configuração e destruição de laços e obrigações sociais e principalmente sobre a vida, em suas muitas faces, ideias e fases.

Nesta obra, nós acompanhados a vida de Ema, a quem primeiro vemos como garota e depois como mulher, uma pessoa de beleza assustadoramente cativante e que fará cair aos seus pés todos os homens, seja para amá-la, para desafiá-la ou para atacá-la. Quem dá vida a esta deslumbrante mulher é Leonor Silveira, atriz do ciclo recorrente de atores de Oliveira e que estreara no cinema justamente em um filme do diretor, Os Canibais (1988). O trabalho de construção de personagem da atriz é algo absolutamente fascinante nesse filme. Adequando-se bem às exigências teatrais do cineasta, e beneficiando-se de um soberbo trabalho de maquiagem e figurinos, a atriz encarna com todo fulgor a sedutora trágica que é a protagonista Ema Cardeano Paiva, que a todos conquista e arrasa.

Na busca pelo prazer intenso, sem obedecer a convenções e, de certa forma, sofrendo por isso, Ema faz valer a definição que se faz dela em dado momento da fita: “o seu rosto pode justificar a vida de um homem“, conceito que é literalmente testado por ela, quando pergunta a um trabalhador de uma propriedade campesina se ele daria a sua vida pela dela. Afeita a luxos e afetada por um grande desalento ao longo de toda a vida, Ema recebe o nome de “Bovarinha” e vê, em torno dela, pessoas de debaterem para conseguir entender seus caprichos ou lidar de maneira menos escandalosa com o que ela traz para o seu ambiente social.

Como o roteiro de Oliveira segue o padrão típico de mesclar temporalidades — seus filmes contemporâneos nunca são realisticamente contemporâneos –, existe aqui uma porção de tradições e ideias propositalmente ultrapassadas de Portugal, da Europa e de diversos países Ocidentais que são trazidas à tona, coisas que vão do comportamento da mulher (sob uma ótica inteiramente machista), da convivência de um casal e do que é o amor… até temáticas como política, geração de riquezas, homossexualidade e religião, que é um dos fios condutores no arco da família central.

O título do filme evoca um espaço e um nome que suscitam a memória histórica, algo que no fim atribui uma certa aura fabular ao longa, principalmente pela maneira como roteiro e montagem organizam a passagem do tempo, uma das duas coisas que mais me incomodaram na película (a outra foi a forma com que o personagem do pai, vivido pelo ótimo Ruy de Carvalho, foi guiado). Esse espaço físico, no entanto, permanece vivo como um personagem, envelhecido pela atenciosa direção de arte, marcado em distas atmosferas pela maravilhosa fotografia de Mário Barroso, parceiro de Oliveira desde O Meu Caso (1986) e também utilizado para finalizar a obra diante de uma premissa trágica já anunciada.

Com uma bela coletânea de peças lunares na trilha sonora, como Sonata ao Luar de Beethoven, os Clair de Lune de Fauré, Debussy e Chopin e a Mondnacht de Schumann, Vale Abraão nos traz faz olhar para a vida e as despedidas de diversas pessoas sob um ponto de vista lírico, desfilando ao lado de seus defeitos e qualidades, suas ideias, perturbações e legado. Uma pérola “neo-flaubertiana”, crítica e cínica do cinema português.

Vale Abraão (Portugal, 1993)
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira, baseado na obra de Agustina Bessa-Luís
Elenco: Leonor Silveira, Cécile Sanz de Alba, Luís Miguel Cintra, Ruy de Carvalho, Luís Lima Barreto, Micheline Larpin, Diogo Dória, José Pinto, Filipe Cochofel, João Perry, Glória de Matos, António Reis, Isabel Ruth, Dina Treno, Dalila Carmo, Paula Seabra, Beatriz Batarda, Isabel de Castro, Júlia Buisel, Laura Soveral, Sofia Alves
Duração: 187 min.

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