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Crítica | Vale Tudo (1988) – Capítulos 1 e 2

Brasil, mostra tua cara!

por Luiz Santiago
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Bem-vindos ao Plano Piloto, coluna semanal dedicada a abordar exclusivamente os pilotos de séries de TV.

Número de temporadas: 1
Número de episódios: 204
Período de exibição: 16 de maio de 1988 a 6 de janeiro de 1989
Há continuação ou reboot?: Sim. Em 2025, a Rede Globo passou a exibir um remake da novela.

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Neste capítulo duplo da estreia de Vale Tudo (1988), telenovela brasileira com uma das vilãs mais famosas de nossa telinha (Odete Roitman, interpretada pela saudosa Beatriz Segall), temos um verdadeiro suco de Brasil oitentista, um país recém-saído da ditadura empresarial-militar (1964 – 1985) e às vésperas da Constituição de 1988, tentando costurar as feridas pós-repressão, enquanto enfrentava uma inflação descontrolada, crises econômicas e uma organização social repleta de desigualdades. A narrativa, centrada no conflito entre Raquel Accioli (Regina Duarte), uma guia de turismo de Foz do Iguaçu marcada pela honestidade, e sua filha Maria de Fátima (Glória Pires), cuja ambição a leva a trair a própria mãe, dá ao espectador um espelho incômodo da nação, acrescido de outros arcos dramáticos, questões individuais e problemas sociais como alcoolismo, desemprego, carestia das coisas e corrupção. Embora a dramaturgia inicial mostre força, os dois capítulos tropeçam ao se deterem excessivamente em sentimentalismos redundantes e em reforços didáticos desnecessários, que, apesar de característicos de muitas novelas e séries, diluem a potência de uma trama que poderia avançar com maior sobriedade.

A abertura já estabelece um contraste visual e sonoro que captura a dualidade do Brasil da época. De um lado, as mansões opulentas da elite carioca; de outro, a simplicidade das casas do povão. A trilha sonora, com Brasil, de Cazuza, na voz de Gal Costa, não apenas reforça a crítica às máscaras nacionais, mas também insinua uma ironia espinhosa: o país cantado é tanto amado quanto traído por seus próprios filhos, algo de certa maneira ironizado por outra canção ouvida nesta estreia: Isto Aqui o Que É, de Caetano Veloso. Nesse cenário, a personagem de Regina Duarte vira um pilar moral (mas sem chatice, graças a uma boa atuação de Regina Duarte), uma mulher que, apesar das adversidades, mantém a integridade em um mundo onde a corrupção parece ser a moeda corrente. Sua contraparte, Maria de Fátima (uma Glória Pires que faz o básico sem muito destaque), encarna a ambição desmedida, movida por desejos que a cegam para as consequências de suas ações. A venda da casa da família — um ato de traição consumado sem hesitação — marca o ponto de ruptura, simbolizando o conflito familiar e a inversão de valores da sociedade que os roteiristas tanto queriam destacar.

A narrativa, no entanto, patina ao prolongar cenas que reforçam o óbvio. Momentos de carga sentimental, como os diálogos entre Raquel e outros personagens que reiteram sua bondade/ingenuidade, ou as interações que sublinham a ambição de Maria de Fátima, consomem um tempo precioso que poderia ser dedicado a aprofundar os blocos dramáticos. Já a montagem sofre com cortes abruptos que prejudicam o ritmo, exibindo algumas transições questionáveis entre núcleos, especialmente nas sequências envolvendo Ivan, personagem de Antônio Fagundes. A citação ao sobrenome Roitman nessa nova linha dramática da trama, promete a chegada de alguém que mudaria por completo a narrativa, embora só possamos fazer esse tipo de observação analítica vendo o drama a partir de hoje, no futuro. Considerando o status de “transição geral” pelo qual o Brasil passava, é possível ver como os produtores destacaram as diferenças sociais e os mais distintos “problemas de classe” que seriam a base dos principais conflitos da novela. Figurinos e locações que alternam entre a ostentação e a precariedade deixam tudo isso muito claro, criando um diálogo visual que pode parecer clichê, mas que, para a proposta, funciona muitíssimo bem.

Por mirar no comportamento humano a partir de seu lugar na sociedade, Vale Tudo toca em questões psicológicas, comportamentais e sociológicas que transcendem seu tempo, já que a vontade de ser o melhor em tudo, ganhar muito dinheiro e fazer qualquer coisa para conquistar e manter o poder são ideais (refletidos em ações majoritariamente infames) que podemos ver aos montes. Maria de Fátima, com sua ambição narcisista; Raquel, com sua ignorância proposital (às vezes irritante); e Ivan, com sua luta para equilibrar idealismo e pragmatismo, oferecem retratos de pessoas que poderiam habitar tanto o Brasil de 1988 quanto o de hoje. O texto de Gilberto Braga não é totalmente azeitado, mas tem bons diálogos e convida o espectador a refletir sobre o preço do sucesso e o peso da integridade, questões que, longe de serem resolvidas (até porque, é o início da novela), continuam no imaginário coletivo. Temos aqui um prólogo promissor, mas medíocre, de uma obra que já demonstrava sua relevância cultural. A trama planta sementes de questionamentos profundos que marcariam os capítulos seguintes, mas se perde em galhos narrativos que poderiam ser podados ou melhor acoplados. O que permanece é um enredo que faz um retrato muito particular do Brasil, não o retrato do cartão postal, mas o da realidade crua, onde a luta por valores e a tentação do poder coexistem num embate sem fim. Um jogo da vida onde muitas regras são ignoradas e, para vencer, algumas pessoas querem crer que vale fazer de tudo.

Vale Tudo – Capítulos 1 e 2 (Brasil, 16 de maio de 1988)
Criadores: Gilberto Braga, Aguinaldo Silva, Leonor Bassères
Direção: Ricardo Waddington
Roteiro: Gilberto Braga
Elenco: Regina Duarte, Glória Pires, Antônio Fagundes, Carlos Alberto Riccelli, Nathália Timberg, Renata Sorrah, Reginaldo Faria, Pedro Paulo Rangel, Cláudio Corrêa e Castro, Lília Cabral, Sérgio Mamberti, Zeni Pereira
Duração: 50 minutos cada

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