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Crítica | Vem Dançar

Um filme sobre a superação das desigualdades sociais por intermédio da dança.

por Leonardo Campos
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Vida de professor não é nada fácil, mesmo nas circunstâncias de ensino com estruturas mais sofisticadas. Lidar com o desinteresse dos jovens pela leitura, a inserção de ações inovadoras com metodologias ativas de ensino e aprendizagem num contexto de colegas apegados apenas aos métodos mais tradicionais e, alguns ultrapassados, além das demandas com coordenações e gestores que nem sempre compreendem a própria realidade em que estão inseridos. Quando a situação é em escolas da rede pública, algumas coisas são ainda mais complicadas, infelizmente. Estruturas, nalgumas vezes, condenadas e prejudiciais para avanços pedagógicos, localizações de complicado acesso, índices de criminalidade supostamente maiores e jovens sem imersos no amargor da desigualdade social, tendo que enfrentar problemas de tipos diversos, tais como falta de incentivo, preocupações em equilibrar os estudos com as demandas profissionais, pois muitos já levam, ainda adolescentes, o sustento para ajudar em casa, além de preconceitos, etc.

Nestes cenários, ocorre, mesmo que raro, de aparecer pessoas que transformam as dificuldades em potência para permitir que tais estudantes ampliem as suas chances de driblar as celeumas e desenvolver habilidades e competências para conseguir vencer diante do determinismo violento. Podemos contemplar um espaço para estabelecimento de uma representação esperançosa em Vem Dançar, de 2006, dirigido por Liz Friedlander, cineasta que se baseia no roteiro escrito por Dianne Houston, numa história inspirada em situações reais. Ao longo de seus 108 minutos, o filme tem diversos bons momentos, apesar de não funcionar muito bem como experiência cinematográfica no quesito dramático, haja vista a quantidade excessiva de chavões e clichês. No entanto, esteticamente dá conta de sua jornada e como cinema espelho, isto é, aquele tipo de narrativa disponível para nos fazer refletir sobre os tópicos mencionados no parágrafo inicial.

Na trama, acompanhamos Pierre Dulaine (Antonio Banderas), um professor de dança que atua numa escola sofisticada e atende pessoas de classes sociais geralmente mais abastadas. Em suas dimensões psicológicas e sociais, ele é recatado e ainda atravessa uma das etapas do luto, acometido pelo falecimento de sua esposa algum tempo atrás, não definido com precisão pela narrativa. Certo dia, ele testemunha o estudante Rock (Rob Brown), um jovem negro cercado de influências nada adequadas para a sua vida, a destruir o carro da diretora da instituição de ensino que estuda. Motivado pela ira por ter sido barrado na entrada de um baile promovido pela escola, o rapaz comete o delito, mas deixa um documento cair e o professor, como testemunha, resolve guardar o conteúdo e voltar ao local no dia seguinte, se oferecendo para ministrar aulas de dança voluntárias para os estudantes em vulnerabilidade na instituição.

Logo de cara, a diretora é objetiva e nega, agradecendo o interesse. Mas, depois, resolve dar uma chance para Pierre Dulaine, lhe indicando a detenção, um espaço na escola onde ficam os “renegados”, os estudantes considerados indisciplinados, a escória que professor nenhum quer ter em sala de aula. São figuras ficcionais cheias de dimensões, cada uma com sua história e lugar de fala, todos a compartilhar a sensação de abandono em suas vidas acometidas pela desigualdade social. Para a diretora, o professor vai desistir logo no começo, mas mudanças vertiginosas ocorrem e o que começa com estranhamento por parte dos estudantes se torna uma jornada que muda a vida de quem está inserido na sala, bem como a do próprio professor, da direção e de todos que testemunham esta jornada de esperança e lições pedagógicas.

Em linhas gerais, Vem Dançar é um filme com dualidades: o marginalizado e o elitizado, o negro e o branco, o rico e o pobre, a abundância e a escassez, a cultural elitista e a cultura popular. Logo em sua abertura, a montagem alternada de Robert Ivison nos demonstra essa junção entre dois mundos díspares. Duas festas são apresentadas: o baile dos afortunados e a festa da escola. Nesta junção de imagens em movimento, temos cores, estilos e sonoridades de realidades distintas, em consonância para nos mostrar que mais adiante, ambos os lugares vão se juntar de alguma maneira, mesmo que não seja necessariamente orgânica. Na direção de fotografia, Alex Nepomniaschy entrega quadros e planos na medida para a edição, setor que também tem como função, captar imagens dos espaços concebidos pelo design de produção de Paul Austerberry, assertivo em sua construção de ambientes díspares. A câmera dança em ritmo frenético com os personagens e permite maior movimentação ao filme em seus aspectos visuais.

Por falar em disparidade, aqui encontramos mixagens. Não apenas de sons, mas das pessoas que atravessam a vida de Pierre Dulaine naquele momento. Uma aluna rica, mas deprimida por se sentir pressionada pela mãe que sempre reforça a sua jornada fracassada na dança, descobre o seu potencial ao visitar uma das aulas do professor na detenção escolar. É uma mudança de paradigma que também transforma a vida desta jovem abastada, mas carente de tantas outras coisas, inclusive apoio de cunho familiar. Valsa, foxtrote, rumba, tango. Danças e ritmos de sua escola de dança ganham nova roupagem nas aulas de Dulaine, abrindo os horizontes culturais não apenas dos estudantes, mas do professor que também descobre novas sonoridades e estilos, perpassando pela subjetividade dos estudantes e se permitindo conhecer os códigos vigentes daquele mundo que ainda lhe é novo e muito sedutor do ponto de vista da descoberta e da experimentação.

Definido por palavras-chave, o filme versa sobre superação, dança, comportamento e mudança estrutural na educação. Dá até para debater sobre a teoria construtivista de Jean Piaget, ao nos permitir refletir sobre a importância do desenvolvimento no processo em que os indivíduos se relacionam entre si e com o mundo externo, num esquema que possibilita a evolução da inteligência mediante as colaborações entre os fatores internos e externos de seu entorno. Vem Dançar traz um professor aberto ao novo, democrático, formulador de ideias e estratégico em suas ações, pois sabia lidar com os estudantes que gravitavam em torno das demandas estabelecidas pela turma que assumiu. Ele leva em consideração toda a subjetividade dos jovens, dando-lhes direcionamentos para que criem os seus respectivos caminhos. No final das contas, não era o troféu em si a coisa mais importante da competição cheia de engajamento. O brilhante aqui é a jornada de aprendizado e os desdobramentos desta primeira iniciativa.

Ao ser um facilitador de processos culturais para os seus estudantes, o personagem de Antonio Banderas semeou o que ali havia de improvável, transformando um cenário caótico numa caminhada de pessoas desencorajadas, mobilizadas para conquistarem mais segurança e elevação de autoestima, indivíduos que relutaram, inicialmente, mas depois aceitaram a possibilidade de mudar os caminhos que pavimentavam para si e para os outros. Trabalharam em equipe, adequaram comportamentos, reinventaram conteúdos culturais solidificados na sociedade e criaram algo novo, demonstrando que muito além da burocracia da nota no sistema, a travessia cidadã promovida pelo professor de dança trouxe chances de modificação para as suas existências alijadas de qualquer indício de sonhos na crua realidade determinista em que viviam.

Vem Dançar (Take the Lead) — EUA, 2006
Direção: Liz Friedlander
Roteiro: Dianne Houston
Elenco: Antonio Banderas, Yaya DaCosta, Rob Brown, Alf Woodard, John Ortiz, Jonathan Male, Jasika Nicole,
Duração: 118 min.

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