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Crítica | Vento Seco

por Michel Gutwilen
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Desde que Vento Seco começa, em uma sequência ambientada numa piscina, o diretor Daniel Nolasco já deixa claro para onde o olhar de sua câmera estará voltado: o pênis. Até por isso, o plano-detalhe será um enquadramento caro à ele durante a narrativa. É quase como se houvesse um magnetismo que atrai o falo ao centro da tela, uma necessidade de enquadrá-lo e fazer dele o grande astro aqui, independente de sua flacidez ou rigidez. São imagens que falam por si só e carregam uma forte potência. 

Porém, esta imposição do olhar não é uma mera aleatoriedade para desconcertar (ou atrair) o espectador, mas um plano subjetivo. Nós vemos aquilo que Sandro (Leando Faria Lelo), o protagonista, mais repara quando está diante de outro homem, aquilo que ele mais deseja. O plano-detalhe se torna mais do que um engrandecimento do pênis, mas também uma concretização do desejo proibido que é compartilhado entre personagem e espectador, no sigilo. Até por isso, a sequência do futebol também é de suma importância, pois desconstrói e ressignifica o esporte tão associado à masculinidade héteronormativa a um deleite visual de corpos suados e genitálias masculinas balançando dentro dos shorts

Seguindo esta lógica, não é apenas o plano-detalhe o único artifício usado por Nolasco para direcionar o espectador ao mesmo olhar de Sandro. Em diversas cenas, um homem passa pelo personagem e a câmera segue aquele corpo, atraído por ele. De mesmo modo, quando o motoqueiro Maicon (Rafael Theophilo) é apresentado, há um movimento de baixo para cima, praticamente como se nós lhe devoraremos com os olhos. Ou seja, se Sandro não pode exteriorizar seus desejos dentro daquele universo, é justamente através dos artifícios cinematográficos que eles ganham forma, privilegiando o espectador. Neste sentido, não há cena mais simbólica do que a que Sandro e Maicon estão juntos na montanha-russa — que não surpreendentemente possui formato fálico. Os dois estão presos naquela gaiola, mas ninguém está vendo eles, apenas nós. Assim, finalmente, Sandro pode “comer” Maicon com os olhos, porque não haverá julgamentos da sociedade ali. Há então, naquele movimento do brinquedo de vai-e-vem, o êxtase, o gozo, o extravasamento, a liberdade.   

Se esta cena já flerta com um certo onirismo ou liberdade poética, este é o caminho no qual Vento Seco vai adentrando progressivamente. Afinal, se o tesão de Sandro está reprimido na realidade, há de se ter uma válvula de escape no mundo dos sonhos. Assim, ao realismo das sequências na fábrica e da aridez do Centro-Oeste se contrapõem a extrema estilização de cores vibrantes desta outra realidade. Após um tempo, passa a existir até uma certa dúvida entre o que é real ou não, indicando esta maior desconexão do protagonista com o mundo e cada vez mais entregue aos seus desejos. Como esses momentos são justamente aqueles nos quais não há amarras, Nolasco não poupa em nada o espectador das fantasias sexuais e fetiches de Sandro. Tudo é filmado com uma enorme frontalidade, sem amarras ou conservadorismo, como na cena de sexo oral que vai sendo aproximada conforme um movimento de zoom. Entramos realmente na cabeça deste homem que só pensa em sexo e não há vergonha em nada que acontece ali, sendo estas as sequências que representam o que provavelmente há de mais corajoso e liberal no cinema brasileiro em 2020. 

A nível comparativo, é possível ver em Vento Seco diversos traços do cinema de Kenneth Anger, um dos primeiros cineastas LGBTQ+ a trabalhar com esta temática de maneira mais frontal em sua obra. Primeiramente, como no curta Fireworks, há no filme uma aproximação da câmera com os corpos nos momentos íntimos e a exploração da linha tênue entre o prazer e a violência. Segundamente, tal como na magnum opus de Anger, Scorpio Rising, existe uma forte sexualização do couro e das partes metálicas que formam uma bicicleta, estando basicamente isso tudo personificado na figura de Maicon. Aliás, é possível que as referências ao célebre diretor sejam apenas coincidência e se trate mais de uma autoreferenciação, uma vez que a fetichização do couro é a temática central do longa anterior de Nolasco, Mr. Leather.

No fim, é uma pena não poder encerrar esta crítica apenas com comentários positivos para Vento Seco, pois ele é praticamente impecável no que se refere a mise-en-scène, mas seu único porém é no que tange ao corte de duração. Com 1h50, um certo cansaço pode toma conta do espectador, principalmente porque as muitas sequências oníricas passam a se tornar repetitivas e não carregam suas forças imagéticas de antes. 

Vento Seco — Brasil, 2020
Direção: Daniel Nolasco
Roteiro: Daniel Nolasco
Elenco: Leandro Faria Lelo, Allan Jacinto Santana, Renata Carvalho, Rafael Theophilo
Duração: 110 mins.

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