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Crítica | Vereda da Salvação

por César Barzine
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Em O Pagador de Promessas, há o retrato do conflito de visões religiosas movidas pela intolerância de um padre. Esse conflito se limita ao simples ato de carregar uma cruz até certa igreja, configurando um embate entre o pequeno desejo simbólico daquele camponês com o fundamentalismo do padre, que não quer qualquer tipo de ligação com religiões fora de seu espectro. O retrato do lado abjeto presente no exercício da fé é conduzido, em sua maior parte, pelo simples diálogo, mantendo um nível básico de sociabilidade. O Pagador de Promessas é um filme manso, doce em certa medida, centrado em um sereno homem e a empatia que temos por ele. O filme sucessor de Anselmo Duarte, Vereda da Salvação, também tem como temática as tensões religiosas entre aqueles que se consideram como autênticos cristãos e os demais, meros hereges travestidos de fiéis. Porém, a abordagem usada por Anselmo neste filme é o exato oposto do que se encontra em O Pagador de Promessas; o conflito religioso extrapola qualquer barreira, vira um show de horrores pela crescente insanidade dos fiéis. Aqui, o extremismo religioso não está apenas na segregação, ele se transforma na mais completa monstruosidade.

O filme é uma verdadeira ilustração das críticas de Nietzsche ao cristianismo, onde essa religião é exposta de forma crua e simples, sem o verniz e as mentiras demagogas tão encontradas em outros filmes e no pensamento coletivo. Se em A Palavra, de Carl Theodor Dreyer, há uma celebração do cristianismo como uma fonte que expande e ilumina a vida, Vereda da Salvação se contrapõe a esse falso modelo de religião, demonstrando a verdadeira faceta dela ao afundar o homem numa guerra contra tudo que encontra. O longa apresenta o cristianismo como negação do corpo e da vida; os dogmas que são exclamados no mais alto tenor por Joaquim evidenciam como o evangelho nada mais é do que um combate ao ser e ao mundo, caminhando num processo de destruição que degrada tudo aquilo que toca. O corpo, a carne, o apetite e a posse são colocados como impureza e luxúria. A moralização de tais aspectos constituem a natureza do cristianismo, que vai contra a natureza do próprio homem. Suas necessidades e seus instintos são inibidos em prol da elevação da alma, resultando na decadência da abstinência; o celibato, a fome e a pobreza viram instrumentos para a aproximação de Deus e se tornar um verdadeiro cristão.

Um beijo abrupto surge no início do filme, sem qualquer contextualização, este movimento isolado adquire um tom incessante, se desdobra através do sexo, e vira a cena que mais se opõe à ideologia tão pregada dentro do longa. Trata-se de um casal de impuros e imorais, que sofrerão os mais duros ataques e intimidações. Ana e Manuel são também frios quanto a esses dogmas, mesmo os dois possuindo fé em Deus. O casal é a luz de sanidade do filme, enquanto Joaquim, irmão de Manuel, está no polo oposto, caindo gradativamente no obscurantismo da religião enquanto ele acredita que está subindo aos céus. Ele começa com a abstenção de comida e água para toda a família, até mesmo para um bebê, filho de Manuel com outra mulher. Este que teve três esposas e assume a sua necessidade de ter uma companheira; sua conduta se apoia na sensibilidade do mundo real, no prazer carnal e na consciência social. O prólogo do filme é justamente sua narração sobre a desigualdade territorial dominada pela concentração de terra por fazendeiros ricos. Ele e sua atual mulher são pessoas “do mundo”, que gozam de seus prazeres e se atentam aos seus problemas; em contrapartida, Joaquim embarca em uma jornada esquizofrênica que tenta substituir o mundo real pelo celestial.

A questão social retorna no terceiro ato, onde mais um acontecimento de opressão estar por vir. Ao mesmo tempo, há uma seita de fanáticos naquele lugar que ignoram qualquer coisa que esteja fora de seu meio espiritual. Logo, a religião é apresentada como uma estonteante distração para as massas, o ópio que leva a cegueira e a gritaria. Os moradores daquele vilarejo se arrastam pelo chão, mexem o corpo das mais diversas maneiras, gritam e clamam ritos de fé – transformam um simples lugar em um ambiente caótico e bizarro. O delírio presente naquelas cenas se reflete numa experiência igualmente delirante aos olhos do espectador, aterrorizado pelas extremidades ocorrentes em que se escancaram o absurdo da fé. A sensação é de um terror gráfico e sugestivo ao mesmo tempo. Gráfico porque os corpos se agitam intensamente, e sugestivo porque a partir desses movimentos se extraem conceitos envolvendo princípios religiosos e seus impactos psicológicos. A câmera que captura, em vários planos gerais, aquele terreno através de ângulos zenitais, proporciona um olhar abrangente dessa conjuntura. Nesses planos há a distância da decupagem, colocando os personagens num patamar inferior e, sucedendo o terror, evocam uma frieza diante da selvageria de homens que renunciaram ao seu estado antropocêntrico.

A decupagem de Anselmo Duarte é magistral, cheia de movimentos intensos e fluidos, com aproximações em zoom-in rápidas e bruscas encaixadas no caráter transcendental da história, que tornam o filme quase que uma experiência fantasmagórica. O que deixa a obra flexível através desses movimentos de câmera, algo maleável ao fanatismo e aos embates que são criados por essa fonte espiritual. O mesmo pode-se dizer do uso de câmera subjetiva na cena em que tentam capturar uma criança “amaldiçoada”, onde o olhar dela que conduz a câmera é aterrorizado por diversos indivíduos ao seu redor, executando uma situação apavorante de cerceamento. Junte isso a trilha sonora futurista e macabra e a cena é elevada a um tom completamente grotesco. Esse som futurista retorna em outra sequência, nela, planos detalhes de armas e tochas de soldados entram em contraponto com mais um ritual proclamado por aquele povo; a ausência dos corpos dos soldados entra em choque com os planos dos rostos e corpos daquelas pessoas alienadas, posicionando o expositivo abaixo do sugestivo. Há mais uma vez o contraste entre a ação do mundo terreno e a ilusão do mundo celestial, em que o primeiro se sobrepõe pesadamente ao segundo, enquanto este, seguro de si mesmo, continua adorando a Deus.

Praticamente quase todas as falas do filmes soam como monólogos, os personagens escancaram suas ideias com palavras pesadas em defesa de seus princípios. A pregação é onipresente e o confronto contra ela também, fazendo com que os personagens discursem seus valores e visões de mundo. São diálogos intensos recheados de um vocabulário arcaico e em um tom solene. O filme constrói um enorme vigor através dessa linguagem, que beira a gritos de guerra. Diante disso, as interpretações são igualmente potentes. José Parisi, que interpreta Manuel, exala uma certa masculinidade em sua postura, com um rigor manifestado em sua voz grossa e sua posição antagônica a Joaquim. Já este, encenado por Raul Cortez, consegue ser manso e extremo ao mesmo tempo. A sua condição de pregador demanda essa leveza, com sua voz em um tom baixo, mas autoritária, ele tenta incorporar Cristo, se camuflando como sábio enquanto manifesta a ferocidade de seu engajamento.

Tudo em torno do fanatismo religioso daquela tribo de evangélicos está centrado na identidade que eles transparecem aos olhos de Deus, o que impõe também uma relação autoconsciente com o ego deles próprios, em que a visão de si mesmo constrói personagens narcisistas, que louvam a sua pureza espiritual e existencial. Tal soberba chega ao ponto de Joaquim pensar ser Jesus, em uma atuação embriagada por um tom calmo e contemplativo, ele repousa na ilusão de ser uma criatura ungida. O mesmo pensamento é carregado por ele sobre a sua mãe, que no caso seria Maria, graças a sua pureza que é um ideal feminino a ser seguido. Supostamente, a mãe dele estaria alheia a todo tipo de degeneração, pois o corpo dela é santo, intocado por qualquer malícia. A realidade é que ela ocupa a mesma posição de uma meretriz, isso graças ao seu passado tenebroso carregado de sexo, homens e filhos perdidos. O corpo dela está sujo, caído na lama assim como os de Manuel e Ana. A doutrina de Joaquim tem como ponto central o corpo, que está entre a inércia e o movimento perante o pecado. O filme também encontra uma brutalidade na forma em que os corpos se movimentam sob um aspecto geral; eles atacam, se defendem, gritam, deitam, se ajoelham. O ritualismo e o embate fornecem um elemento carnal ao longa onde a história é tão contaminada pelo espírito. No final de tudo, percebemos, através da morte, que tudo que temos é o corpo, e o espírito ainda se esconde em meio ao nada.

Vereda da Salvação – (Brasil, 1964)
Direção: Anselmo Duarte
Roteiro: Jorge Andrade (peça teatral e roteiro) e Anselmo Duarte (roteiro)
Elenco: Raul Cortez, José Parisi, Lélia Abramo, Esther Mellinger, Maria Isabel de Lizandra, José Pereira, Áurea Campos
Duração: 100 minutos

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