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Crítica | Viagem à Lua (1902)

por Luiz Santiago
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Georges Méliès queria ter sido pintor, mas o pai não apoiou a ideia. Antes de se tornar o grande cineasta que foi, trabalhou na fábrica da família e construiu carreira nos palcos, como mágico ilusionista. Esteve presente no Salon Indien du Grand Café, em 28 de dezembro de 1895, quando os Irmãos Lumière exibiram seus primeiros curtas. Ofereceu dez mil francos aos Lumière pelas câmeras do cinematógrafo, oferta de pronto recusada pela dupla (que já havia recusado ofertas bem maiores do Museu de Cera de Paris – Musée Grévin – e até do Folies Bergère). Não podendo ter o cinematógrafo, Méliès foi a Londres e comprou um Teatógrafo (ou Animatógrafo) de Robert William Paul, eletricista e fabricante britânico de aparelhos ópticos, que também se tornou cineasta; máquina semelhante ao da famosa dupla francesa. E com este aparelho, o mágico, o inventor e o frustrado pintor em Méliès ganhou asas e criou alguns dos mais divertidos, aterrorizantes e fantásticos sonhos que o Primeiro Cinema conheceu.

As atividades de Méliès como diretor começaram em 1896, ano em que dirigiu nada menos que 81 curtas-metragens, dentre obras de ficção e pequenos documentários, panorâmicas simples e cenas do cotidiano. A partir desse momento, ele tentou aplicar suas técnicas de mágica, ilusionismo e tendências teatrais ao espetáculo cinematográfico, uma arte ainda sem identidade e em fervorosa construção. Ele aprendeu a fazer truncagens, stop motions e aplicar efeitos especiais, tornando-se um pioneiro do cinema em vários aspectos e legando para os cinéfilos de séculos depois a sua imaginativa forma de ver o mundo.

Viagem à Lua (1902) é o mais importante dos filmes de Méliès, embora não seja, necessariamente, o seu melhor filme. O curta é uma adaptação do livro Da Terra à Lua (1865), de Jules Verne e também de Os Primeiros Homens na Lua (1901), de H. G. Wells. A trama se inicia em Paris, no Clube de Astronomia, onde o professor Barbenfouillis propõe ao renomado grupo que invistam em uma viagem à Lua, algo que não agrada a maioria e gera, claro, uma confusão com direito a coisas sendo jogadas no pobre professor (interpretado pelo próprio Méliès). Apenas cinco astrônomos –- Nostradamus, Alcofrisbas, Omega, Micromegas e Parafaragaramus -– concordam em realizar a ousada viagem. Então a mágica e as estranhezas típicas do Primeiro Cinema e deste tipo de filme começam a acontecer.

Quando eu falo “estranhezas”, não interprete como uma acusação negativa. Estou usando a palavra no sentido mais natural possível, com o fato de ser estranho vermos o que acontece a partir do momento em que as preparações para a viagem se dá. A mistura de cenários reais, cenários pintados e objetos construídos no estúdio de Méliès –- com muitos protótipos para os atores esculpidos em terracota e elementos do cenário que misturavam vários tipos e tratamentos de papel, madeira e chapas leves de metal –- o curta é claramente resultado de um grande esforço para parecer supra-realista dentro do seu gênero –- com licenças científicas como o fato de os astrônomos não utilizarem nenhum traje espacial na Lua –- e ao mesmo tempo não se importa em exagerar nas interpretações ou na sequência de acontecimentos, caraterísticas comuns do cinema daquele momento.

Com ampla exploração das técnicas que tinha desenvolvido até o momento e observação atenta para realizações cinematográficas dos Estados Unidos a que tinha cesso, Méliès conseguiu um resultado deliciosamente satírico de temas científicos que, guardados os avanços tecnológicos e o estabelecimento de uma linguagem cinematográfica, são utilizados até hoje. Além disso, o longa tem uma daqueles cenas absolutamente inesquecíveis da Sétima Arte, a chegada da cápsula dos astrônomos à Lua. O satélite é mostrado com face antropomorfizada e dá língua para a tela quando é atingido, sem necessariamente demonstrar dor. A aproximação por cortes bruscos e a súbita chegada da cápsula são parte de um trabalho que diverte, encanta e segue misturando grande número de espaços e personagens curiosos, como os cogumelos lunares, os Selenitas (habitantes da Lua, assim denominados em homenagem à deusa grega da Lua, Selene) e o fundo do mar, onde a cápsula cai após a fuga dos astrônomos do palácio dos Selenitas — indicação de Méliès contra a colonização?

Em 1993 foi encontrado, na Espanha, uma cópia do filme colorizada a mão. Acredita-se que o trabalho tenha sido feito apenas em 1906. De 1999 a 2011 foi realizado um longo e penoso processo de restauração, que terminou com a exibição do filme restaurado no Festival de Cannes, em 2011, e com o seu lançamento em Blu-Ray, no ano seguinte. Mais um novo capítulo – e não necessariamente o último – é escrito na história de um dos primeiros filmes de ficção científica do cinema. Viagem à Lua é uma daquelas grandes obras que atravessam gerações, avanços e modelos de sociedade mas permanecem vivas e seguem causando grande admiração em quem as vê.

Viagem à Lua (Le voyage dans la lune) — França, 1902
Direção: Georges Méliès
Roteiro: Georges Méliès (baseado na obra homônima de Júlio Verne e em Os Primeiros Homens na Lua, de H.G. Wells).
Elenco: François Lallement, Jules-Eugène Legris, Victor André, Bleuette Bernon, Brunnet, Jeanne d’Alcy, Henri Delannoy, Georges Méliès
Duração: 14 min.

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