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Crítica | Viagem à Lua: O Outro Mundo ou os Estados e Impérios da Lua, de Cyrano de Bergerac

por Luiz Santiago
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Você provavelmente conhece Cyrano como um personagem, o protagonista da famosa peça de Edmond Rostand, publicada na França em 1898. Aqui, porém, falaremos do Savinien de Cyrano de Bergerac em carne e osso, o escritor e duelista francês que viveu entre 1619 e 1655, sendo mais conhecido por uma de suas peças, a tragédia A Morte de Agripina (1654). Dentre os seus muitos escritos, existem dois que constam na lista das pioneiras ficções que mostram viagens do homem para dois importantes astros de nosso Sistema: o Sol em História Cômica dos Estados e Impérios do Sol (1662) e a Lua, no presente O Outro Mundo ou os Estados e Impérios da Lua (1657).

Narrado em primeira pessoa, através de um personagem chamado Cyrano, o livro é uma verdadeira coleção de pensamentos científicos, sociais, filosóficos, jurídicos, comportamentais e fantasiosos do século XVII, costurados à viagem que esse indivíduo faz até à Lua, primeiro amarrando ao corpo frascos com gotas de orvalho (sim, você leu corretamente) e depois através de uma máquina similar a um foguete-pássaro que ele mesmo constrói, após sua tentativa inicial dar errado e ele cair na Nova França (hoje Canadá) não sem antes bater um papinho filosófico sobre o Heliocentrismo , os movimentos da Terra, a pluralidade dos mundos e a infinitude do Universo com Charles Jacques Huault de Montmagny.

Toda a primeira parte do livro traz absurdos e conceitos científicos que hoje são amplamente conhecidos mas que, na época, estavam em seus primeiros estágios de discussão, divulgação e ensino massivo. O lado puramente ficcional é bastante engraçado porque nossa leitura sempre terá como base a tecnologia contemporânea, de modo que um corpo besuntado de banha e frascos de orvalho que elevam um homem ao ar, fazendo-o viajar da França ao Canadá; ou uma máquina de madeira impulsionada por fogos de artifício e pelo vento ser capaz de levar um indivíduo à Lua são coisas que inevitavelmente nos fazem rir. É muito interessante ver como o pensamento do autor funcionava ao criar esses elementos “fantasticamente tecnológicos“, intercalando cenas de ação com outras de observações críticas ou reflexivas a respeito dos mais diferentes assuntos.

O leitor não deixa de sentir algo quando o personagem enfim aterrissa no nosso satélite, e uma das primeiras conclusões a que Cyrano chega é que do ponto de vista lunar, a Terra era a Lua e aquele era o planeta — esse conceito irá se estender até o final do livro, sendo um dos motivos de julgamento e discussões amplas que o personagem terá em sua estadia. Eu fiquei bem impressionado com a quantidade de “camadas de exploração” que Bergerac adiciona aqui. Primeiro, ele coloca seu protagonista no ‘Paraíso da Lua’, onde conhece Elias, Adão, Enoque e Acabe. As conversas aí são engraçadas porque Cyrano não é religioso e isso o faz bater de frente com algumas ideias celestiais, acabando por ser expulso, mas conseguindo roubar algumas maçãs da Árvore da Ciência.

A narrativa começa realmente a engatar após essa expulsão. Cyrano então conhece os Selenitas — habitantes lunares que já eram utilizados na literatura desde História Verdadeira (Luciano de Samósata, século II) — e passa a ter um tratamento progressivamente hostil, em dado momento sendo encarcerado e exibido como “macaco divertido” para os nativos. Em termos de história, contudo, há bem pouca coisa a se observar aqui. Pela maneira como começou a explorar a Lua logo nas primeiras páginas, eu acreditei que a linha de abordagem do autor seria mais próxima de uma exploração territorial, um caminho mais próximo da geografia que da filosofia, astronomia, física e outras ciências (o que Jules Verne não faz com um ponto de vista, não é mesmo?). Mas o autor cria algo bem diferente ao dar andamento à sua saga.

O que o leitor terá, no decorrer das páginas, são longas (e a partir de certo ponto, um tanto chateantes e sonolentas) discussões de Cyrano com diferentes homens e mulheres sobre assuntos como os 4 elementos serem vistos como apenas como 2 (gravidade e vazio); sobre Deus; sobre a forma de se alimentar (na Lua, as pessoas se alimentam dos cheiros e fumaça dos alimentos); sobre a forma de pagamento das coisas (a moeda da Lua é o poema); sobre andar sobre duas pernas (os Selenitas andam de quatro); sobre gerontocracia, casamento e procriação; sobre micro e macrocosmos; sobre oportunidades na vida, átomos, eternidade do mundo e das coisas; sobre destino dos mortos e sobre sexo. As ações e a própria organicidade narrativa são reduzidas em detrimento do pensamento que Cyrano e seus interlocutores têm a respeito desses e de outros assuntos, fazendo com que o leitor sinta-se em contato com as muitas variantes do pensamento irônico, das críticas e das sátiras que se faziam nos anos 1600 ao povo, ao governo, à civilização.

Bergerac é muito hábil em explorar situações da sociedade francesa em que ele vivia, corrompendo-as ainda mais para, através do choque, criticar o julgamento das pessoas sobre o comportamento alheio e principalmente sobre pensamentos científicos e morais guiados por forças religiosas (a cena em que ele é forçado a sair todo arrumado, apregoando em diversas praças que renega o fato de ter dito que aquele astro não era um planeta e sim a Lua da Terra é um dos exemplos disso). A maior dessas “corrupções”, a meu ver, considerando a época, está na forma como ele representa o seu protagonista, entendido pelos Selenitas como uma fêmea de outro “macaco” que lá estava, um macaco que não era ninguém menos que Domingo Gonsales, o personagem de O Homem na Lua (1638), de Francis Godwin. O fato de Cyrano ser homossexual certamente deu a ele uma leveza e uma cômica despreocupação ao representar esse homem francês falando de si mesmo como uma suposta fêmea, sendo tratado como fêmea e colocado numa cela com um “macho da espécie” para procriar, algo que é literalmente dito no livro.

A derradeira discussão da obra volta a ser interessante, trazendo muito da aura da primeira metade do livro. A aparição do Diabo nos últimos minutos e o fato desse mesmo Diabo ser o responsável por trazer Cyrano de volta à Terra (deixando-o cair na Itália) é um ponto curioso em si mesmo. Seria esta a punição final e definitiva do personagem? De qualquer forma, é bem engraçado ver esses primeiros momentos do viajante, com definições de novos objetivos e um grande alívio de estar de volta a um mundo conhecido, embora isso não seja exatamente a “melhor coisa possível” dentre todas as possibilidades. Posteriormente, em História Cômica dos Estados e Impérios do Sol, o autor tomaria como ponto de partida justamente a sua saída da Itália e os louros que colheu dessa sua expedição lunar. Para nós, é o tipo de aventura mista de absurdo e engenhosidade que vale muitíssimo a pena ser lida, embora o miolo da obra não seja tão interessante quanto os seu início e o seu fim.

Viagem à Lua: O Outro Mundo ou os Estados e Impérios da Lua (L’Autre monde ou les états et empires de la Lune) — França, 1657
Autor: Cyrano de Bergerac
Edição lida para esta crítica: Biblioteca Azul (Globo Livros, 2013)
Tradução: Fulvia M. L. Moretto
191 páginas

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