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Crítica | Viagem aos Seios de Duília

por César Barzine
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Em meio a face de José Maria, um homem recém-aposentado, a frieza de sua expressão representa o desajuste dele com a vida, mais especificamente com o peso do tempo e o seu intrínseco desencanto. O diretor Carlos Hugo Christensen, que, em O Menino e o Vento, iria demonstrar imensa sensibilidade ao apresentar outros personagens sem sintonia com o seu contexto – que, neste caso, era constituído não pelo tempo, mas pelo espaço -, já apresenta sinais de alto teor poético e existencialista nesta obra-prima ignorada e que se afirma como um dos melhores trabalhos de todo o cinema nacional.

Em O Posto, um jovem inicia a sua vida – trabalho, mulher e autonomia. Boa parte do filme se concentra na introdução dele ao seu primeiro emprego. É o começo de tudo aquilo que o caracteriza como adulto, os primeiros passos que são tão vazios em história, mas tão ricos em experiência. Isso acompanhado de seu comportamento frio, uma timidez que sugere insegurança perante o mundo. Já em Viagem aos Seios de Duília há o exato oposto. O caminho que está por vir não importa, o que realmente apresenta significado são os passos já traçados. O passado é um fardo para o protagonista Zé Maria, seja pela nostalgia de sua antiga doce vida ou pela perda da jovem amada que ele deixou.

De início, o filme demonstra ser apenas um estudo de personagem de um senhor aposentado que terá que encarar a solidão e o tédio de sua velhice pacata. Todos os seus conhecidos dizem que agora ele está numa posição confortável e que poderá gozar de imensa alegria. Mas o tempo vago o deixa aflito, tanto que há uma sugestão do desejo dele de retornar ao trabalho, lugar onde ele se sentia mais completo. A quietude de sua casa se inverte para uma ida a uma boate com um amigo, duas mulheres e mais um homem. Lugar moderno, hedonista e até mesmo libertino. Um lugar onde José Maria percebe que o seu tempo já passou. Ele chama uma dessas mulheres para dançar, ela amigavelmente rejeita dizendo que não dança em boates. Em seguida, ela aparece dançando naquele mesmo lugar, com um outro homem, um jovem. Apesar da dinâmica e do clima diferente, é possível observar semelhanças com o filme Juventude e também com Morangos Silvestres. As três obras encaram, cada uma ao seu modo, a decadência da vida causada pela passagem do tempo, em que, onde havia brilho, agora habita a melancolia que sempre se compara com o passado de si próprio e o presente alheio.

A crise existencial de Zé Maria se volta para a ideia de resgatar aquele passado. Algo parecido com o filme O Pão Nosso de Cada Dia, que também é marcado pelo dualismo entre o campo e a cidade, porém numa ordem inversa; a protagonista idealiza o campo como forma de construir o novo, e não de reconstruir o velho. Outra diferença é no tratamento enfático das duas obras; a de Christensen é contemplativa, ao passo que a de Murnau é maniqueísta. E por decorrência disso, a cidade, para Zé Maria, acaba tornando-se um lugar agradável, sendo que lá habita muitos de seus amigos. Mas é no campo que está o grande encanto de sua vida, terra onde ele cresceu e cultivou uma paixão em tempos de mocidade. O que resta agora para Zé é carregar as amargas (e belas) memórias dessa época. Essa transfiguração do tempo é retratada através de flashbacks que constroem o fluxo de consciência do personagem, remetendo às suas lembranças na forma de um idílio. 

Zé Maria decide retornar àquele velho lugar, por um andar saudosista ele contempla cada ponto do vilarejo. Isso ao som da viola que percorre seus passos e olhares, em que cada acorde produzido pelo instrumento remete a um aspecto arcaico, à simplicidade da vida humilde, num retrato sertanejo que sintetiza o tempo e o espaço como objeto de fascínio e relíquia sentimental. A memória, quando se cruza com a concretude daquilo que é guardado na lembrança, passa a jorrar no coração daquele senhor com uma doce serenidade.

Se nas sequências urbanas os enquadramentos são mais fechados, os momentos no campo são decupados por planos abertos, evocando o frescor daquele ambiente e os afetos que lá estão guardados – seja como memórias ou como uma experiência. Essa exposição geral dos enquadramentos abraça aquela natureza e expressa uma fase mais livre e jovial de Zé Maria. E em torno de seus pensamentos e dos flashbacks, há o constante uso de fade-out e fade-in, um recurso mágico que entrega um formato onírico e suave O longa acaba parecendo um sonho carregado de angústia e poesia. As transições entre os planos são de tamanha leveza que conseguem, paradoxalmente, se conectarem com a dureza dos sentimentos de Zé Maria. O espectador mergulha na alma daquele homem, numa sincronia de dor e lirismo que desperta a mais íntima empatia.

Um grande encontro surge no final: Zé Maria e a sua velha paixão. Os diálogos são dominados por plano-contraplano, os dois personagens não se juntam, há uma barreira entre eles. Pouco falam do amor dos dois, tudo é muito seco, e a decupagem junto com a fotografia acompanha isso. Os enquadramentos vão ficando cada vez menores à medida que a conversa se torna mais calorosa. Começa com um close-up médio, depois passa para um penetrante close-up comum e termina em um ainda mais sufocante close-up extremo. Toda aquela história romântica e as lembranças carinhosas se desabam em poucos minutos. A iluminação na face dos dois reforça isso deixando parte dos rostos deles totalmente sem luz, numa obscuridade que remete ao abismo em que o protagonista está caindo. Por fim, vemos paisagens daquele lugar. Um espaço agarrado ao passado, seja pelas suas condições materiais ou por aquilo que ele representa para um homem.

Viagem aos Seios de Duília – (Brasil, Portugal, 1964)
Direção: Carlos Hugo Christensen
Roteiro: Carlos Hugo Christensen, Anibal Machado (conto)
Elenco: Rodolfo Mayer, Nathália Timberg, Oswaldo Louzada, Lícia Magna, Sara Nobre, Isolda Cresta, Rosa Sandrini, Mauricio Loyola, José Policena, Otávio Cardoso, Jotta Barroso, Artur Semedo
Duração: 105 minutos

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