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Crítica | Vidas Secas: Graphic Novel

Uma interessante leitura imagética do icônico romance de Graciliano Ramos.

por Leonardo Campos
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Em 1938, Graciliano Ramos publicou um grande marco de sua carreira literária: Vidas Secas, o icônico romance desmontável, isto é, estrutura que pode ter os seus capítulos lidos dissociados do formato em questão, compreendidos como contos, agrupados e transformados no livro que narra a saga de uma família pelos confins do sertão nordestino, acometidos pela violência da vegetação nativa, bem como pelo ardor dos raios solares que devastam a fauna e afastam as chances de sobrevivência diante de um cenário hostil que, infelizmente, parece ainda se repetir paulatinamente quase cem anos depois que esta obra-prima da literatura brasileira marcou, para sempre, as etapas subsequentes do movimento modernista idealizado na década de 1920. Em Vidas Secas, acompanhamos a saga de Fabiano e Sinhá Vitória, os pais do Menino Mais Velho e do Menino Mais Novo, figuras que ainda contam com a presença da humanizada Baleia, a cachorra da família, uma figura ficcional que nos leva as lágrimas quando é eliminada em determinado ponto do romance. Aqui, em suas 104 páginas, diagramadas pelo projeto gráfico da Editora Galera, nós podemos acompanhar o trabalho roteirizado com excelência por Arnaldo Branco, estrutura textual ilustrada por Eloa Guazzelli, dupla que sabiamente traduz os elementos do romance para o suporte semiótico visual, numa proposta assertiva de Graphic Novel.

Antes da abertura, uma página contendo a apresentação dos personagens sem diálogos, apenas dispersos no espaço de desenvolvimento da história, por meio de um plano geral, nós contemplamos o elucidativo prefácio de Elizabeth Ramos, professora do curso de Letras da Universidade Federal da Bahia, profissional que apresenta a Graphic Novel ao leitor, por meio de um texto sem tom hermético, como geralmente costumam ser as análises encasteladas dos feudos acadêmicos, produções que, em muitos casos, não se preocupam em alcançar maiores leitores a não ser o próprio círculo do ego que muitas vezes estaciona a produção de conhecimento e o impede de transpassar os muros das universidades. Ramos, sabiamente, esmiúça a teoria da tradução intersemiótica e faz uma análise panorâmica da literatura e da cultura enquanto objeto de culto, numa apresentação efetiva, preocupada em explicar aos leitores que no processo de ascensão da era da reprodutibilidade técnica, a arte se expandiu e ganhou o público mais amplo, numa abordagem que passa pela Antiguidade, contempla a história da fotografia e do cinema, dando ênfase aos seus desdobramentos na popularização das artes.

Com isso, a professora reforça que há várias maneiras de lermos uma obra artística, dando ainda destaque ao infame tópico temático da fidelidade, informando ao leitor que a Graphic Novel de Vidas Secas é uma interpretação do romance, uma tradução para os tempos atuais, não o texto para ser comparado ao ponto de partida de 1938, isto é, nem melhor, nem pior.  É apenas uma nova e válida forma de lermos obras de arte. Dito isto, importante para seguirmos com a análise do trabalho de Arnaldo Branco e Eloar Guazzelli, temos 13 capítulos que se propõem a ler, por meio de imagens, as passagens de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, aquilo que encontramos na audaciosa e concisa escrita do autor. O silêncio, presença marcante no romance, é representado por personagens sem os rostos completos, traçados com cores que nos remetem ao tom de aridez que compõe toda a Graphic Novel. Em cenas de estabelecimento de situações de injustiça, tons escuros e fortes dominam as imagens, num material com linhas demarcatórias bastante específicas, texto verbal desenvolvido dentro das limitações deste formato, bem como a presença de Baleia tal como no romance, mais humanizada que os próprios seres humanos.

Experiente em suas traduções de Nelson Rodrigues, isto é, as leituras de Vestido de Noiva e O Beijo no Asfalto para o formato em questão, Arnaldo Branco entrega passagens que deflagram o tom de miséria social, falta de perspectiva e demais elementos que são marcas do romance que serve como ponto de partida para esta versão de Vidas Secas. Ele descreve textualmente pontos importantes para compreensão do tom da obra, tendo como acompanhamento, as imagens de Eloar Guazzelli, um design de linhas demarcatórias propositalmente irregulares, uso constante de plano médio e primeiro plano, para captação das emoções dos personagens, com fonte criada exclusivamente para a Graphic Novel, isto é, um desenho sem serifa, inclinado, o que nos lembra a representação gráfica da caligrafia, além da orientação verticalizada, material espalhado pelos quadros em ritmo lento, expostos em perspectivas geralmente frontais.

Ademais, ainda na seara estética, Vidas Secas traz um design com peculiaridades que reforçam os cuidados dos tradutores ao emular a literatura num processo de transformação de suas ideias em imagens: abstratos, os personagens são parcamente iluminados, criados com um tom monocromático, praticamente incorporados ao ambiente em que atravessem em cada capítulo. Na modulação do projeto, um intenso jogo de sombras ganha destaque, com saturação que delimita a presença de cores, numa história árida que ganha tonalidade distinta apenas em Inverno, o capítulo que delineia um breve feixe de esperança para os personagens e para nós, leitores, indivíduos que sabem exatamente como esta saga de falta de direitos humanos básicos termina, envolta numa circularidade hedionda, originada pelo descaso diante da miserabilidade social que nos persegue há gerações. Vidas Secas, em Graphic Novel, é a comprovação disso, afinal, traz para a contemporaneidade um problema social brasileiro deflagrado há quase um século, mas ainda uma triste e permanente realidade perversa. Em linhas gerais, a tradução da dupla é um primor, trabalho cuidadoso, respeitoso e necessário para incentivar a leitura.

Vidas Secas – Brasil, 2015
Roteiro: Arnaldo Branco
Ilustrações: Eloa Guazzelli
Editora: Galera
Páginas: 104

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