O título em português do livro de história sobre os povos do norte da Europa normalmente conhecidos pelo nome “vikings” do arqueólogo britânico Neil Price empresta uma certeza que o autor não mostra ter em momento algum de sua obra, além de retirar todo o charme do original, que bebe da mitologia desses povos. Afinal, Price não só afirma que o que ele escreve é “uma história dos vikings” como ele usa o mito da criação dos homens pela lente cristã – inevitavelmente, como ele deixa claro ao longo de seu trabalho – para batizar seu livro de The Children of Ash and Elm ou, em tradução literal, Os Filhos do Freixo e do Olmo de forma a unir interpretações científicas de descobertas arqueológicas e também geológicas com a tão rica mitologia nórdica muito presente na literatura ocidental e que por vezes, infelizmente, foi sequestrada por ideologias odiosas. Trata-se de uma obra que, acima de tudo, contribui para desmistificar a visão padrão que a maioria das pessoas tem dos vikings, normalmente correlacionando-os com sede de sangue, hábitos selvagens e, claro, aqueles capacetes cônicos com chifres que eles nunca usaram.
Apesar de a chamada Era Viking ou Era dos Vikings ser normalmente considerado o período entre os anos 750 e 1050 d.C., Price esforça-se para começar muito antes, conectando o Inverno Vulcânico de 536 d.C. e a queda do Império Romano do oeste com alterações profundas no comportamento dos povos do norte europeu nos anos seguintes e com a criação do mito do Ragnarok, o fim do mundo da mitologia nórdica, levando não só uma reorganização geopolítica da região, como o início da criação dessa identidade – que é longe ser uma só – que forma o imaginário popular sobre esses povos. O autor – e aqui lá vou eu implicar novamente com o título em português – foge de qualquer resposta definitiva sobre os movimentos formativos que levaram efetivamente ao início da Era Viking marcada pelo ataque que destruiu a Abadia de Lindisfarne na ilha britânica de mesmo nome no ano de 793 d.C., até porque há indícios de avanços anteriores sobre outros territórios, inclusive na direção oposta, na região das nações bálticas, e entrega ao leitor uma visão rica e fluida sobre o que pode ter ocorrido, jamais descartando teorias categoricamente, ainda que sempre deixando claro aquilo que ele acha que ocorreu ou pelo menos em que ele acredita.
O que Price procura fazer constantemente é deixar bem claro que o que chamamos coletivamente de vikings tem uma estrutura muito mais complexa que esperamos, focando o tanto quanto possível no tecido estrutural desses povos de maneira a jogar luz sobre os homens do norte não como guerreiros unidimensionais, mas sim como pessoas com quem podemos nos identificar em seu dia-a-dia, ainda que sem jamais descartar o passado escravocrata que eles tiveram. Ele eficientemente retira aquele véu monocórdio e, sinceramente, cansativo, que a expressão viking popularmente evoca e constrói uma civilização organizada, com comércio ativo com regiões próximas, mas também tão remotas quanto as Arábias e que, mesmo no modo “guerra expansionista”, revela uma capacidade impressionante de simbiose com os povos locais a ponto de eles terem feito parte da formação atual da Grã-Bretanha, da França e também dos países eslavos, notadamente da Rússia em sua dimensão mais ocidental, claro. Afinal, mesmo que as ilhas britânicas sejam mais famosamente retratadas em obras literárias e audiovisuais que lidam com os vikings, a penetração deles na França foi impressionante, chegando até mesmo a sitiar Paris e, com isso, ganharem a posse da região que hoje não sem querer é conhecida como Normandia, e, na imigração por terra e mar, o povo Rus’, que o consenso indica ter se originado no que hoje é a Suécia, ter sido tão claramente relevante.
Narrativamente, Price une uma estrutura temática com cronológica, ou seja, retorna no tempo a cada novo assunto que aborda de maneira a repassar conceitos a partir de prismas diferentes que ajudam a reforçar conceitos que ele estabelece logo na largada. Com isso, o leitor nunca se perde. Ao contrário, a sensação que o autor consegue passar a cada novo capítulo é de “história viva” com cada aspecto narrado amarrando-se com os mais diferentes elementos que formam uma vasta história única que chega até mesmo na América do Norte bem antes dos europeus mais ao sul. Claro que, com isso, Price não escapa de às vezes se repetir, algo que fica particularmente saliente quando ele usa essa repetição para reiterar seu ponto central que é a desmistificação dos vikings como bárbaros que viviam de saquear britânicos, o que, pelo menos para mim, funcionou bem, especialmente porque ele faz questão de costurar também a mitologia nórdica nos fatos e nas interpretações que exibe. Os únicos “senões” de sua abordagem repousam em questões que resvalam na sensibilidade moderna, ou seja, em tudo aquilo que deriva de uma visão mais plural e diversa da sociedade em que vivemos, como o papel da mulher na organização desses povos e as diferenças raciais.
No entanto, esses “senões” não são motivos de alarme para aqueles minimamente civilizados, pois Price nunca diz que a sociedade viking era algo diferente de patriarcal e jamais afirma que era comum encontrar pessoas de pele escura em meio aos que muitos idealizam erroneamente como loiros de olhos azuis. O que o autor e arqueólogo faz é relativizar a uniformidade de pensamento que a própria profissão dele sempre sofreu e levou a conclusões errôneas de que os monarcas desses povos sempre eram do sexo masculino – há prova científica do contrário que ele expõe – e que não havia contato e convivência com povos diferentes daqueles de pele clara, algo inclusive derrubado pelo célebre e fascinante relato de Ahmad ibn Fadlan. Eu apenas chamo de “senões” porque por vezes Price insiste em dar a entender que as exceções talvez possam ter sido mais do que meras exceções – não há, ainda, material arqueológico suficiente para isso e ele mesmo admite, ainda que disfarçadamente – e ao chegar a conclusões modernas em razão disso. Por outro lado, ele é maduro o suficiente para admitir que ainda há um caminho longo pela frente para se enxergar os povos nórdicos de outrora tanto sem o filtro cristão, como também com a revisão de achados arqueológicos com conclusões errôneas.
Price não escreve um tratado definitivo sobre os vikings e ele não tem essa pretensão em momento algum. O que ele oferece ao leitor – leigo ou não tão leigo assim – é um panorama enriquecedor sobre uma era relativamente curta na História do Homem, mas que não só serviu de fagulha para incendiar o imaginário popular, como, também, para influenciar profundamente – bem mais do que podemos imaginar – na formação da Europa moderna. Os Filhos do Freixo e do Olmo foram e continuam indo longe, com a franca evolução da arqueologia, antropologia e geologia prometendo muitas novas interpretações para completar esse fascinante quebra cabeças que está longe de ser definitivo.
Vikings: A História Definitiva dos Povos do Norte (Children of Ash and Elm: A History of the Vikings – Reino Unido, 2020)
Autoria: Neil Price
Editora original: Basic Books
Data original de publicação: 25 de agosto de 2020
Editora no Brasil: Editora Crítica
Data de publicação no Brasil: 1º de novembro de 2021
Páginas: 640