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Crítica | Vila Real, de João Ubaldo Ribeiro

Despossuídos.

por Kevin Rick
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Existe muita dor em Vila Real. Uma dor histórica, de pertencimento, memória, resistência e sobrevivência no sertão. Escrita por João Ubaldo Ribeiro, a obra é ambientada numa cidade fictícia do Nordeste brasileiro, descrevendo os obstáculos de camponeses contra uma empresa mineradora que usurpou suas terras. Acompanhamos a narrativa majoritariamente pela perspectiva de Argemiro, um homem simples que acaba se tornando um dos líderes de movimentos violentos dos sem-terra contra inimigos que jogam sujo com armas, papéis e palavras.

Mesmo que a história seja fictícia, o livro tem características históricas e antropológicas muito claras, trazendo diversas metáforas para conflitos rurais do sertão nordestino, especialmente com a Guerra de Canudos (até mesmo citada durante a narrativa), dando à leitura um caráter de denúncia para as desigualdades sociais. Para isso, Ubaldo usa e esbanja de uma escrita representativa da geografia local e linguisticamente imersa no dialeto da região, construindo com muito cuidado os cenários e os espaços sociais e ambientais para o leitor, desde a guerrilha, reproduções culturais, até momentos cotidianos de reflexão dos personagens.

O autor tem muita habilidade nessas descrições, situando-nos de maneira simbólica e por horas até poética do que os personagens estão vivenciando, mas sempre com um olhar cruelmente autêntico para a dureza da região, seja da própria natureza, seja da atuação do homem na paisagem. A leitura é pautada por muitas metáforas, quase beirando elementos folclóricos, com poucos diálogos e pouca objetividade narrativa, tornando a obra mais sobre atmosfera e sensações meditativas do que necessariamente sobre a trama de combate. Cada palavra, cada ação e cada pensamento descrito dos personagens são extensões da terra, dos animais e das batalhas, estudando a condição humana da região, suas dificuldades e sua miséria. Até mesmo a estrutura de escrita de Ubaldo exterioriza uma certa rigidez e austeridade do sertão, com parágrafos longos, às vezes pouco claros em suas alegorias e metáforas, e, de certa forma, assustadores.

Aliás, a forma como Ubaldo conta a história se assemelha a pequenos contos sobre diferentes tópicos e até espécies de parábolas, basicamente criando um evangelho sertanejo, sobre sua mata e pedras, sobre seus indivíduos e sua luta, e sobre seus diferentes heróis com camadas messiânicas. Nesse sentido, passamos por uma variedade temática que deixa diversos aprendizados e ponderações, indo de dramas inerentemente humanos, como identidade (singular e coletiva), autoaceitação e autodescoberta, determinação e senso de propósito, assim como discussões mais amplas, como sociedade de classes, valores culturais e religiosos, a exploração sociopolítica de um povo e sua região, e o ponto de vista da subsistência dos excluídos.

No meio desta diversidade literária, histórica, dramática e temática quase impossível de configurar, Ubaldo sempre acerta no ponto onde mais dói, nas reflexões com sentimentos, no retrato desta realidade que causa intensa comoção. É uma história de uma agonia palpável com indivíduos que são prolongamentos do corpo nordestino, mas que não têm sua posse, que são humilhados e explorados ao ponto de deturpar sua essência cultural nas bases mais fundamentais: duvidar dos seus costumes, das suas práticas e do seu suor, duvidar até mesmo de sua existência, ou pior, servir ao ódio e ao combate.

Interessante, então, que em meio a tanto sofrimento, traições, torturas, fome e injustiças sociais, Ubaldo encontra graça e fé. Num cenário impossível, Argemiro, os outros personagens e o próprio leitor entendem que esse povo sempre teve identidade social, sempre teve beleza cultural, em seus acertos e erros, em sua consciência de Conselheiro e mensagens de confronto, e que esta terra árida dá frutos, mas estava sendo roubada por inimigos, que, aliás, pouco aparecem e pouco importam para Ubaldo. Vila Real está mais interessada em retratar a memória histórica dura do sertão nordestino, ao mesmo tempo demonstrando sua admiração e respeito pela região, seu povo e suas batalhas. Uma verdadeira aula de narrativa simbólica, nos dando uma história que não posso caracterizar como feliz, mas que oferece trechos de esperança, e principalmente de apreço e reflexão, debruçando o crítico em lágrimas e pensamentos que examinam a História, a sociedade e o ser humano.

Vila Real (Brasil, 1978)
Autor: João Ubaldo Ribeiro
Editora: Alfaguara
Páginas: 164

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