Lorde sempre foi uma artista desconfortável ou pelo menos distante dentro da ideia convencional de uma “popstar”. Mesmo nos seus momentos mais radiantes, como no synth-pop vibrante e intenso de Melodrama ou nos desertos dourados e nostálgicos de Solar Power, havia um senso de distanciamento entre o que se espera de uma estrela pop e o que ela se permite ser. Com Virgin, seu novo álbum, essa tensão não apenas continua, como se aprofunda até o limite. Estamos diante de sua obra mais crua, esquisita, sensual e extremamente introspectiva. Um disco que, ao mesmo tempo em que repele algumas convenções da música comercial, também busca um tipo de prazer selvagem e quase místico que vemos aos montes na indústria. Há muito caos, alguma carnalidade e uma boa dose de contradições, apesar da trend da “Lorde triste” continuar mantendo distância à medida que a mesma continua passando por seu coming-of-age lírico.
A capa, em que vemos uma fotografia capturada pela provocadora fotógrafa Heji Shin da radiografia da pélvis de Lorde, como aludindo a um véu translúcido de sua feminilidade, resume bem o disco: é sobre exposição e camuflagem, sobre olhar o corpo e o desejo sem filtros. Entre temas sobre sexo, prazer, fertilidade, espiritualidade e gênero, a produção é um reflexo das transformações modernas em busca de identidade. Nesse meio, a abordagem minimalista é uma corrente para evitar fórmulas pop, com canções que são uma espécie de monólogos devocionais em câmera lenta. Com 11 faixas curtas, muitas com menos de três minutos, mas raramente lineares, a experiência do álbum ocorre entre pausas fragmentadas e discursos que surgem e desaparecem como flashes de um diário pessoal, com a persona de Lorde como uma letrista em primeiro lugar ganhando o palco principal, enquanto o instrumental se torna mais e mais periférico e coadjuvante à medida que o disco progride.
Assim, Virgin não é um álbum feito para playlists ou baladas – não esperem um novo Royals, por exemplo. É um disco de textura, não de estrutura. Infelizmente, essa tônica não é completamente funcional, com a produção demorando a engrenar, principalmente em seu início de pouca dinâmica emocional, voltando-se para uma estética fria e sem variação. O disco abre com Hammer, uma faixa seca, quase industrial, que carrega na voz crescente e no beat nervoso a ambiguidade de gênero e a sensação de habitar múltiplos corpos, com cada vocal quebrado e cada sintetizador fraturado construindo a atmosfera introspectiva que é interessantemente desconfortável, mas pouco marcante. Sinto o mesmo em What Was That, que até tem uma tensão mais próxima das pistas com batidas de clube (com uso mais de eletrônico do que pop), mas que não abandona a angústia e a pegada de um trabalho que é menos sobre festa coletiva e mais sobre celebração do corpo que dança entre memórias e devaneios.
Permeado por sintetizadores ondulares e um groove flutuante, Shapeshifter mantém o estilo de melodia das faixas anteriores, dessa vez com Lorde cantando sobre mutação, como o próprio título alude. Acho a letra de diferentes mudanças um pouco chata, mas a faixa flui um pouco melhor, se aprofundando na curiosa criação de uma sensação de estranhamento íntimo. Em Man of the Year, Lorde trava o discurso e desafia o pedestal que a fama criou, de maneira provocativa se nomeando herói de si mesma com uma letra de libertação pessoal num vocal cheio de vulnerabilidade acompanhado de uma leve batida. A canção é elegante porque é simples, mas sigo sentindo uma falta de arrojo que marque a presença da produção.
A partir de Favourite Daughter, sinto o álbum crescendo um pouco mais, talvez porque a organicidade da obra gradualmente te mergulhe na profundidade familiar de sussurros entre cordas sutis e uma harmonia que parece reconstruir traumas. O título (favorita, filha) é ambíguo, como se a artista se autointitulasse com cautela, ainda sentindo os efeitos do peso emocional da herança materna. Em Clearblue, vejo a faixa mais diferente do disco. Apesar de manter os temas de corpo e fertilidade, é uma canção quase de spoken-word, feita de pausas e órgãos de sintetizador que respiram fundo e nos deixam sentir a confissão em uma introspecção que incomoda.
Depois dessa densidade esquisita (num bom sentido), GRWM traz um pouco de leveza, com um tom lírico rimado e gostoso de ouvir, mas com a mesma preparação íntima de um lado sensual e quase performático sobre feminilidade no acrônimo (Get Ready With Me) sobre rituais íntimos do cotidiano. É uma faixa carismática, com uma produção leve, percussão orgânica e cordas sutis. Já em Broken Glass, há fragmentação emocional e metáfora material, com sintetizadores que parecem estilhaços ressoando da voz em vibrato triste. A musicalidade segue delicada aqui, algo que muda um pouco em If She Could See Me Now, talvez a canção com a maior ascendência vertical da obra em batidas levemente energéticas. O disco se encerra com David, uma balada simples que sintetiza o que há de positivo e negativo no trabalho de Lorde nesse álbum, com um piano suave, uma abordagem lírica quase de sussurro noturno e uma carta aberta que fecha o ciclo de confissões com ternura na melodia que desmancha na escuridão de uma música tão pessoal e tão excessivamente introspectiva que pode soar bela e vazia na mesma medida.
Virgin não é um disco que te impacta. É uma obra que te observa em silêncio até você decidir se quer ou não entrar. É deliberadamente difícil, por vezes opaco, e completamente alheio às expectativas comerciais dentro de sua introspecção. Não há hinos, refrões explosivos ou ganchos dançantes; há ecos, respirações e hesitações. Dentro desse conceito, o álbum é conciso, funcionando como um registro íntimo mais do que como coleção de hits. No final, considero que Lorde faz um trabalho maduro, corajoso e, sobretudo, vulnerável, mas que justamente por sua falta de intensidade lírica, de ímpeto sonoro e muitas das vezes até de profundidade em seu tópicos, acabe flutuando e passando pelo ouvinte como um sussurro íntimo que agrada, mas que não agarra.
Virgin
Artista: Lorde
País: Nova Zelândia
Lançamento: 27 de junho de 2025
Gravadora: Universal New Zealand, Republic
Estilo: Pop, Synth-pop, dance-pop