Home FilmesCríticas Crítica | Vítimas Digitais: A Série Completa

Crítica | Vítimas Digitais: A Série Completa

Linguagem ficcional e documental se fundem nesta série sobre os impactos da conexão em nossas vidas.

por Leonardo Campos
392 views

Como as pessoas que compartilhamos momentos de tanta intimidade podem fazer a controversa curva do comportamento e tentar destruir a nossa imagem por meio de vazamentos e perseguições virtuais? Este é o questionamento norteador dos sete episódios de Vítimas Digitais, produção brasileira assertiva ao debater, por meio do discurso híbrido entre ficção e documentário, o momento histórico em que vivemos, era da exibição demasiada, da falta de segurança dos dados que compartilhamos, dentre outras celeumas de uma realidade que não podemos evitar, mas, nos ensina a ser cada vez mais cautelosos. A cada história apresentada, parece que estamos diante de algo surpreendentemente ficcional, mas a proximidade da realidade não está apenas na afirmação dos créditos de abertura que reforçam a aproximação das tramas com situações que de fato aconteceram. Nós, em algum momento, já fizemos coisas parecidas, inevitavelmente, neste mundo de sedução e consumo tão fascinante quanto o enigmático canto das sereias, provação de Ulisses no poema homérico Odisseia.

Lançada em 2019, Vítimas Digitais foi dirigida por João Jardim, também responsável pela idealização do programa, numa sala de roteiristas que contou com o apoio de Felipe Sholl, Antonia Pellegrino e Fábio Mendes, equipe que elaborou as narrativas curtas, na média dos 28 minutos de duração, sobre os mais diversos casos de abuso, perseguição e importunação do mundo físico aos meandros da esfera virtual. As histórias geralmente começam com os personagens em seus respectivos cotidianos, brutalmente sacolejadas por surpresas diante do comportamento de falsos amigos, novos encontros proporcionados por aplicativos de paquera, antigos namorados que não aceitam o término da relação, dentre outros casos. O primeiro capítulo é sobre a personagem de Debora Falabella, jovem mulher que namora um cara que descobre da pior maneira possível ser agressivo, figura que não aceita o fim do relacionamento e vaza fotos da moça numa rede social criada por ele, haja vista o seu fácil acesso aos dados pelo fato de já terem dividido pacotes de uma operadora de telefonia.

O pior, neste caso, é que além de ser uma exibição inoportuna, perigosa para a sanidade da personagem, as imagens veiculadas foram clicadas sem o devido consentimento, em situações que ela sequer imaginava ser alvo dos registros. Na segunda história, focada na tradição brasileira do silenciamento das mulheres, temos uma terrível reviravolta na vida de uma atriz que decide sair com um cara que conhecer num aplicativo estilo Tinder. No encontro, ele demonstra ser uma pessoa legal, interessado em temas feministas e correlatos. Ao leva-lo para casa, a personagem desfruta de momentos de prazer, mas ao passo que o encontro se aproxima do fim, ele não aceita a despedida e a estupra, situação catalisadora de outras crises na vida da atriz, principalmente depois que ela divulga nas redes sociais, se expõe, sendo inicialmente compreendida, mas depois apontada como culpada pelo acontecimento que a traumatizou.

Na história seguinte, a vítima tem as suas fotos veiculadas num site de prostituição, pois o individuo misógino acredita que a sua companheira seja a sua posse e não aceita o encerramento da relação. Há, neste caso, conforme um dos brilhantes depoimentos da parte documental, uma postura de perversidade no comportamento do agressor, interessado em destruir a imagem pública de uma mulher quando ela não quer mais ser parte de sua trajetória. Em todas estas tramas, o trauma é um tópico temático central, pois mesmo que o problema seja resolvido em partes, não há possibilidade de realizar o apagamento dos momentos de pavor vividos pelas figuras ficcionais, vítimas que adentram em processos depressivos, também prejudicadas por perder a capacidade de acreditar novamente em pessoas vindouras em suas vidas.

No quarto episódio de Vítimas Digitais, acompanhamos a saga de uma jovem humilhada socialmente ao ter as imagens íntimas, vazadas sem autorização, por um namorado inconsequente. Um ano depois de ter compartilhado, sem sequer saber que o registro seria compartilhado, a garota atravessa um caminho pavimentado por ofensas, propostas indecorosas, estresse catalisado por uma ação que era parte de um momento de prazer no passado, mas que se transformou em transtorno no futuro. Nesta trama, dois especialistas trazem comentários bastante pertinentes para a série de maneira geral. Primeiro, versam sobre o trauma ser como uma tatuagem, algo que fica fixado no cérebro, como uma espécie de defesa para que não passemos por coisas do tipo novamente, por isso a complexidade em seu acompanhamento terapêutico. Ademais, por não sabermos lidar com a velocidade das coisas na era virtual, muitas vezes sequer pensamos nas consequências de uma simples foto sensual compartilhada.

A cadência de tragédias virtuais continua no quinto episódio desta série que traz design de produção bastante contemporâneo, setor assinado por Zilda Mosckovich, num trabalho que contempla os perfis sociais das personagens, em sua maioria, pessoas bem-sucedidas socialmente. Com direção de fotografia assumida por Louise Botkay, Vítimas Digitais cria situações visuais dinâmicas, em especial, nos momentos de inserção documental, com pluralidade de enquadramentos para os depoimentos dos especialistas, produção que também capricha no design de som e nos efeitos visuais para colocar o espectador no clima da cibercultura. Nalguns momentos, acreditei ser o meu celular a tocar com mensagens de aplicativos e redes sociais, mas eram recursos da série, demonstração que ilustra que a pessoa que vos escreve também está contaminada pelos embalos da virtualidade, seduzido a se desconectar do que assiste para dar uma olhadinha curiosa nas mensagens que chegam.

Sigamos. Como mencionado acima, o episódio traz uma professora que excede os seus limites de confiança e permite que o parceiro grave os momentos de prazer durante a relação sexual. O problema é que em sua postura ciumenta, ele implica com o pai do filho da personagem e num ataque de fúria, disfere um tapa no rosto da mulher que denuncia e se separa. A vingança? Nada menos que a postagem do vídeo num site ao estilo X-Vídeos, conteúdo que chega aos alunos, aos conhecidos, transformando para sempre a vida da docente que se reergue, mas atravessa uma dolorosa fase traumática. Na história seguinte, temos o mesmo padrão, uma jovem mestranda decide gravar com o namorado, mas quando as coisas fogem do controle, ele envia mensagens por e-mails para todos os contatos da garota, delineando suas aventuras sexuais, num processo de humilhação que flerta sobre a importância do marco civil da internet e da lei para resolução de questões que envolvem pornografia de vingança.

E, no desfecho, temos a curiosa história de um homem bem-sucedido, heterossexual, mergulhado numa redoma de estresse ao ter um falso perfil criado num aplicativo de encontros, logado constantemente como homossexual em busca de sexo. Garotos de programa aparecem em sua porta, mensagens frequentes em seu celular e outras situações de importunação criam um cotidiano de caos para o personagem, alguém que descobre a infeliz sina de uma amizade que ele acreditava ser firme, mas que se revela ser o contrário de tudo que ele imagina sobre rede de apoio e confiança. Interessante que neste encerramento da série, os especialistas da instância documental comentam o quão nós vivemos numa era complexa, pois se afastar pode ser uma solução em casos assim, mas no geral, o apagamento do espaço virtual é o distanciamento de tudo aquilo que engendra as nossas ações sociais, econômicas e culturais num mundo cada vez mais conectado. O que era, no entanto, para ser uma benção, infelizmente, tornou-se uma maldição. Na era virtual, as nossas das identidades são frágeis, por isso, é necessário que nos tornemos usuários mais fortes.

Vítimas Digitais – A Série Completa (Brasil, 2019)
Criação: João Jardim
Roteiro: João Jardim, Antonia Pellegrino, Fábio Mendes, Felipe Sholl
Direção: João Jardim
Elenco: Débora Falabella, Mariana Nunes, Marcos Veras, Elisa Volpatto, Maitê Padilha, Carol Oliveira, Roberta Santiago, João Pedro Zappa, Guta Stresser
Duração: 25 a 28 min (7 episódios, cada)

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais