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Crítica | Viva: A Vida é Uma Festa

por Gabriel Carvalho
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Recuérdame.

A Pixar já nos emocionou muitas vezes, abordando temáticas complexas, criando jornadas espetaculares, com uma sinceridade e suavidade admiráveis. É um estúdio, acima de tudo, humano, que sabe relacionar seus personagens exóticos com sentimentos verdadeiros, os quais são sentidos tanto por homens quanto por brinquedos, peixes, insetos, carros, monstros, robôs, ratos e por que não sentimentos sentidos pelos próprios sentimentos? Em uma comparação com a companhia do camundongo falante, a Disney está tão próxima à magia quanto a Pixar está próxima à verdade. Uma verdade otimista, de fato, longe de uma sobriedade que pode afastar tanto crianças quanto adultos deste tipo de substância cinematográfica, mas uma verdade tão honesta quanto a recriada em trabalhos cinzentos que lidam com a realidade de forma mais crua. O décimo-nono filme deste fabuloso estúdio de animação pode não ser categorizado como a sua melhor produção, mas definitivamente sabe tocar no coração de cada um de nós.

A começar a análise de Viva: A Vida é Uma Festa pela jornada que move a trama, temos aquela narrativa tradicional, sem muitas novidades. Uma fórmula que deu certo na maioria das vezes, mas que por outro lado, funcionaria mais se não caísse demasiadamente em alguns clichês que já estamos acostumados a assistir. Por exemplo, não será dessa vez que não veremos aquela solução de problemática encontrada no último segundo; cenas inteiras que criam perguntas, criam tensões, que já sabemos previamente a resposta que nos aguarda. No entanto, trazer inovações no roteiro, subversões completas de narrativa, não é um requisito pedido por nós; não é algo profundamente fundamental. Uma história com um objetivo forte, um discurso poderoso, pode ser aliada a um esqueleto comum sem perder o encanto, ainda mais quando trabalha alguns elementos cruciais, como personagens, apego emocional, envolvimento dramático, a simples e velha boa comédia, universo rico de detalhes, entre outras características. Não entendam erroneamente, este não é um filme totalmente previsível, há coisa inesperadas e soluções que, embora passíveis de premeditação, são muito bem construídas. Mas definitivamente estaremos muito mais envolvidos com esses outros elementos citados do que com o storytelling em si.

Em paráfrase a Banksy, anônimo artista britânico, ou qualquer que tenha sido o verdadeiro emissor dessa frase, dizem que morremos duas vezes. A primeira, quando paramos de respirar, e a segunda, quando nosso nome é falado pela última vez. A ideia por detrás dessa citação é a que move excepcionalmente a mais nova produção da Pixar Animation Studios. Sim, a perspectiva da morte, assunto sempre delicado, é retomada novamente, como outras obras anteriores já a tomaram. Porém, se Up: Altas Aventuras e as demais tratavam da temática de maneira solene, sem muito estardalhaço, aqui a morte é abraçada como se fosse uma velha amiga, a qual acompanha-nos antes mesmo de nosso nascimento. A cereja do bolo é a visitação que a animação faz à cultura mexicana, visto que o Día de Muertos é uma das festividades mais adequadas para se tratar da questão abertamente. Outras obras já fizeram isso antes, mas nenhuma com tanto carisma quanto essa. As coisas vão além da mera diversão gratuita paralelizada a uma estética diferente. A Pixar faz um ode a toda a grandiosidade e riqueza cultural do México, e não meramente se apossa dela para construir sua história. Há muito respeito nessa produção, a qual, acertadamente, conta com um elenco de vozes composto inteiramente por latinos ou descendente de latinos. Não é por menos que Viva já é a produção mais vista da história do México, tendo sido especialmente lançada lá cerca de um mês antes do que nos Estados Unidos.

Indo agora para uma visualização superficial – em uma tentativa de evitar ao máximo spoilers – do plot do longa-metragem, Miguel (Anthony Gonzalez) é um jovem garoto amante de música, que vive, contudo, em uma família que enxerga essa arte como uma terrível maldição, um pensamento que se originou décadas atrás, quando o tataravô do menino deixou sua esposa e a sua filha Coco (Ana Ofelia Murguía, na tradução brasileira chamada de Inês) para perseguir seu sonho. Seguindo uma estrutura comum destes filmes, nos quais conflitos do tipo seguem caminhos inicias que já estamos acostumados a assistir, Miguel acaba se vendo diante de um mundo muito maior do que ele mesmo, a Terra dos Mortos, onde ele acabará acidentalmente encontrando seus ancestrais mortos e sairá em busca da bênção de Ernesto de la Cruz (Benjamin Bratt), o maior músico da história do México.

Coco (título original da obra, muito mais condizente com o espírito e a essência do longa do que o brasileiro, bobo e prepotente – subestimando a inteligência do público) também é, como a premissa sugere, um filme bastante musical, refinado por composições belíssimas. Enquanto Un Poco Loco tem uma melodia espirituosa, super divertida, Remember Me, música central para a narrativa, composta por Kristen Anderson-Lopez e Robert Lopez, é riquíssima em significado para a história, efetivando vínculos emocionais do público com a própria obra. A performance desta por Hector (Gael García Bernal), companheiro de viagem de Miguel na Terra dos Mortos, embala uma sequência com uma carga dramática fortíssima, apresentada a nós por meio de um flashback vital para a história, o qual fortalece monstruosamente os laços que criamos com os personagens. É o melhor flashback da história da Pixar, isso se não consideramos a sequência inicial de Up como um também. No mais, é notável a qualidade técnica desta animação. A apresentação a Terra dos Mortos é um espetáculo visual de alto nível; a ponte de pétalas douradas é assombrosamente bem animada, assim como as centenas de rugas que incorporam a fisionomia da Mamá Coco. Também deve-se comentar o visual dos mortos, esqueletos que trazem em seus crânios lembranças dos costumes mexicanos em pintá-los durante a celebração feita aos que se foram.

Outrossim, Hector é um coadjuvante de peso, que cresce como personagem a medida que o filme progride. Viva nos surpreende nesse ponto, dando a alguns personagens que cruzam ocasionalmente com o protagonista em sua jornada, importâncias que não esperávamos que tivessem. A própria Coco, por exemplo, só tem sua vitalidade para a narrativa revelada devido o título da própria obra (outra coisa que se perde na tradução brasileira, ao mesmo tempo que se ganha, dado o fator imprevisibilidade; fiquei confuso agora, estou eu falando um ponto positivo do título original não ser Coco?). Dos trabalhos de voz, além de Gael García Bernal, Allana Ubach, interpretando Amelia Rivera, também merece um destaque. Sua personagem é uma das mais fortes mulheres das animações da Pixar, sendo a líder de uma família inteira (a visão de família é outra das abordagens feitas muito bem pelo filme), decidida de seus pensamentos e protagonista de seus rumos, como revelado em seu background. A relação dela com um outro personagem, porém, não é algo muito bem resolvido, caindo no campo que presumimos que ia acabar caindo, mas sem uma construção bem feita até lá. Em outro caso, o roteiro traz uma conclusão tirada pelo personagem Miguel em relação a Ernesto e Hector muito forçada.

O longa-metragem da dupla Lee Unkrich e Adrian Molina, roteiristas e diretores do filme, fala muito sobre lembranças, manejando-as incrivelmente bem para que tenham significados muito importantes para o público. A forma como a cultura mexicana acaba sendo impulsionada a todos, independente da relação do espectador com ela, é extraordinária. Não se preocupem se vocês não sabem nada sobre o Día de Muertos, as informações relevantes para nós entendermos e acreditarmos neste novo mundo são expostas de forma entrelaçada com os diálogos, sem interrompê-los. É irônico que a exposição mais disfuncional seja exatamente a que não fala sobre os mortos, mas a que fala sobre o passado. O background que comporta o ódio da família de Miguel pela música – o abandono de seu tataravô – podia ser um item revelado ao longo do enredo, e não em seus primeiríssimos minutos, apesar do visual remetente à cultura do México. Ademais, muito provavelmente o filme mudará, nem que seja um pouco, conceitos que temos sobre vida, morte, memória e saudade. Para aqueles que perderam alguém, definitivamente Viva os fará lembrar deles. Tal feito é, portanto, uma forma de nos fazer acessar um pedaço da riqueza mexicana, entender um pouco mais a maneira como um povo encara temáticas tão complexas e subjetivas. Uma maneira, aliás, muito bela de se ver o inevitável, de se ver os que foram não como corpos em decomposição, mas como boas memórias, as quais mantém-os vivos de alguma forma, seja no nosso coração ou na Terra dos Mortos.

Viva: A Vida é Uma Festa (Coco) — EUA, 2017
Direção: Lee Unkrich, Adrian Molina
Roteiro: Lee Unkrich, Adrian Molina, Jason Katz, Matthew Aldrich
Elenco: Anthony Gonzalez, Gael García Bernal, Benjamin Bratt, Alanna Ubach, Renee Victor, Jaime Camil, Alfonso Arau, Selene Luna, Ana Ofelia Murguía, Edward James Olmos, Dyana Ortellí, Herbert Sigüenza, Jaime Camil, Sofía Espinosa, Luis Valdez, Polo Rojas, Montse Hernandez, Lombardo Boyar, Octavio Solis, Gabriel Iglesias, Cheech Marin, Carla Medina, Blanca Araceli, Natalia Cordova-Buckley, Salvador Reyes, John Ratzenberger
Duração: 110 min.

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